sábado, 28 de fevereiro de 2009

Miséria tolhida

"O artista, o poeta, o escritor, os que perguntam: todos são caçadores de simulacros, incansáveis calculadores de improbabilidades. Pombas ou abutres, frágeis canários ou escondidos melros, raspam, rasgam, rompem, sempre roendo as suas próprias garras. O invisível que há neles então emerge..." [Ana Hatherly, in Simulacros"] "Como ter idéias sem o calor do desejo para elas? Desce sobre ti a mortalidade fria. Que significa haver novas idéias com o sangue quente que nas outras já arrefeceu. Tens, quando muito, a longínqua memória delas. São idéias que já não fazem mover aquele de ti, que nelas tinha o seu sangue, com que eras vivo. Uma idéia começa no teu sistema muscular, de muitos graus centígrados, e morre na pele engelhada da tua múmia. Entre os dois ela não mudou senão no que, de ti, arrefeceu. Tens ao menos alguma idéia ainda viva na memória? Mete-a numa botija e vê se amornas com a sua tepidez a tua miséria tolhida..." [Vergílio Ferreira, in 'Escrever']

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Olho-te demasiado dentro

"Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são idéias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota ser proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade. Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota. Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a vida a dizer-me: "Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma graça, sabias? Vá, reza comigo." E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela. Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada (creio eu) "revelação" e que isso fosse idiota. Mas a minha parente era-o, de certeza, e queria fazer de mim outro idiota. Não por desejar "reconverter-me", mas por aconselhar-me, como meio, o de eu não pensar, o de eu (principalmente) não pensar. Se tivesse casado com ela (que não era filha da minha lavadeira) talvez tivesse sido feliz - não se sabe - idiota e feliz. Assim, fiquei longos anos idiota e infeliz, infeliz por ser idiota, e saber que o era e que não podia deixar de o ser. Ora, um idiota que é "infeliz" por saber que é idiota já pode estar a caminho de deixar de o ser. É uma possibilidade... Há idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de felicidade que consiste em uma pessoa "se julgar muito superior" às que a rodeiam... Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa." [Alexandre O'Neill, in "Idiotia e Felicidade"]

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Fragmento do espanto

"Se me afasto de uma sociedade que considero má, bem depressa sou atacado pelos demônios da solidão; e procurando amigos melhores, acho os piores. Mesmo depois de vencer as paixões más e chegar, pela abstinência, a uma certa tranquilidade de espírito, sinto uma auto-satisfação que me eleva acima do próximo; e temos à vista o pecado mortal, a vaidade imediatamente castigada..."
[August Strindberg, in 'Inferno']
"Religião verdadeira? Todas as religiões são verdadeiras enquanto fazem viver espiritualmente os povos que as professam, enquanto os consolam de terem tido de nascer para morrer, e para cada povo a religião mais verdadeira é a sua, a que ele fez. E a minha? A minha é consolar-me em consolar os outros, embora o consolo que eu lhes dê, não seja o meu!" 
[Miguel de Unamuno, in "São Manuel Bom Mártir"]
"Os tentáculos da escrita. A escrita é um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstractiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se.Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo íntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor é místico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita é um fragmento do espanto... já alguém o disse."
Bonjour! [Ana Hatherly, in "Tisanas"] 

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

As armadilhas

"Os convencidos da vida. Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes, sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear!
Mas também "os aturo por escrito". No livro, no blog, no rascunho, no jornal. 
Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua "excelência", da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.
Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um "espelhismo lisonjeador". 
Além de espectadores, o convencido precisa de "irmãos-em-convencimento". Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?
No corre-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na família, na política, no jornalismo, nas rodas de amigos. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.
Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajetória, o convencido da vida farta-se de cometer "gaffes". Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das gaffes, além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um "parvenu", a pior das gaffes é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro.
Daí que não seja tão raro, como isso, ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a "refaire surface". Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi."
Bonjour!
[Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"]

Intoxicados de sí

"O homem dividido contra si mesmo procura estímulos e distrações; ama as paixões mais fortes, não por razões profundas, mas porque momentaneamente elas lhe permitem "evadir-se de si próprio" e afastam dele a dolorosa necessidade de pensar. Toda a paixão é para ele uma forma de "intoxicação", e desde que não pode conceber uma felicidade fundamental, a intoxicação parece-lhe o único alívio para o seu sofrimento. 
Isso, no entanto, é o sintoma duma doença de raízes profundas. Quando não há tal doença, a felicidade provém da plena posse das suas faculdades. É nos momentos em que o espírito está mais ativo, em que menos coisas são esquecidas, que se sentem alegrias mais intensas. Esta é, sem dúvida, uma das melhores pedras de toque da felicidade. A felicidade que exige intoxicação de não importa que espécie, é "falsa" e não dá qualquer satisfação. A felicidade que "satisfaz" verdadeiramente é acompanhada pelo completo exercício das nossas faculdades e pela compreensão plena do mundo em que vivemos..." [Bertrand Russell, in "A Conquista da Felicidade"]

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Os tabus

"Somos um sonho divino que não se condensou por completo dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas. (...) Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição. A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo. Entre nós, o Verbo não encarnou inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o encobre e ondula em volta dele, e dança aos ventos da loucura... E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. Neste limbo interior, neste infinito espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards, vestido à moda ou coberto de farrapos. Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga. Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam..." [Teixeira de Pascoaes³, in 'O Pobre Tolo'] "Se a todos nós fosse concedido o poder de ler a mente uns dos outros, suponho que o primeiro efeito seria que quase todas as amizades "se desfariam". O segundo efeito, entretanto, poderia ser excelente, mas um mundo sem amigos seria sentido como intolerável, e nós teríamos de aprender a gostar uns dos outros sem a necessidade de "um véu de ilusão" para esconder de nós mesmos que não nos consideramos, uns aos outros, pessoas absolutamente perfeitas. Sabemos que os nossos amigos têm as suas falhas, e que apesar disso são pessoas de um modo geral aprazíveis das quais gostamos. Consideramos intolerável, no entanto, que tenham a mesma atitude conosco. Esperamos que pensem que, ao contrário do resto da humanidade, nós não temos falhas. Quando somos compelidos a reconhecer que temos falhas, tomamos esse fato (óbvio) com demasiada PERPLEXIDADE..." [Bertrand Russell,in "Amizade sem Tabus"]

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O tolo e o poeta

"Somos uma turba e ninguém: um ninguém que vive, porque é sangue e carne, e existe porque é esqueleto ou pedra; e uma turba da espectros que nos acompanha desde a Origem, e é a nossa mesma pessoa multiplicada em mil tendências incoerentes, forças contraditórias, em vários sentidos ignotos... 
E lá vamos, a tactear as trevas, ladeando, avançando, recuando, como pobres jumentos aflitos e às escuras, sob as esporas que o espicaçam para a frente e as rédeas que o puxam para trás. 
Pobres jumentos aflitos e às escuras! Escouceiam, orneiam, levantam a garupa. De que serve? As patas ferem o ar e aquela voz de soluços, que faz rir, não chega ao céu. 
Deus, criando as almas, condenou-as à suprema solidão. Algumas iludem a pena. Imaginam conviver com as árvores e os penedos. Falam às árvores e aos penedos, queixando-se dos seus desgostos. (...) Somos uma turba e ninguém. Somos Deus e o Demónio, o Céu e a Terra e outras letras grandes... e Ninguém. "
[Teixeira de Pascoaes¹, in 'O Pobre Tolo']
"A existência não cabe numa balança ou entre os ponteiros dum compasso. Pesar e medir é muito pouco; e esse pouco é ainda uma ilusão. O pesado é feito de imponderáveis, e a extensão de pontos inextensos, como a vida é feita de mortes. 
A realidade não está nas aparências transitórias, reflexos palpitantes, simulacros luminosos, um aflorar de quimeras materiais. Nem é sólida, nem líquida, nem gasosa, nem electromagnética, palavras com o mesmo significado nulo. Foge a todos os cálculos e a todos os olhos de vidro, por mais longe que eles vejam, ou se trate dum núcleo atómico perdido no infinitamente pequeno, ou da nebulosa Andrómeda, a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia! 
A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão. Esta apenas descobre um simples jogo de forças repetido ou modificado lentamente, gestos insubstanciais, formas ocas, a casca de um fruto proibido. 
Mas o miolo é do poeta. Só ele saboreia a vida até ao mais íntimo do seu gosto amargoso, e se embrenha nela até ao mais profundo das suas sensações e sentimentos. É o ser interior a tudo. Para ele, a realidade não é um conceito abstracto, idéia pura, imagem linear; é uma concepção essencial, imagem hipostasiada, possuída em alma e corpo, nupcialmente, dramaticamente, à São Paulo ou Shakespeare." 
[Teixeira de Pascoaes², in 'O Homem Universal']

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A evidência de sí


"Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio "de milagre e de vazio", do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio, só podia revelar-se e executar-se na "união total com nós mesmos", com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este "eu" solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse "eu" e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso, o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a "gratuitidade" deste milagre de sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. Somos cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgote até às fezes a nossa condição de escaravelhos. "

Vergílio Ferreira, in 'Aparição'

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A lã e o leite

"Nunca digas que és filósofo - e coíbe-te o mais possível de falar por máximas à pessoas vulgares. Pratica antes o que prescrevem as máximas. Por exemplo: não digas num festim como se deve comer, mas antes "come como se deve comer". Que te lembres, em boa hora, como agia Sócrates: sempre fugindo da ostentação, acontecia que, quando pessoas o procuravam para serem "conhecidas de filósofos", ele próprio tecia o elogio dos recém-chegados, e aos filósofos os apresentava, tal era o seu desejo de que não dessem por ele.
Que adiantas dizer em tom alto sobre suas capacidades elevadas? Ludibriará aos outros como a ti próprio...
Se, entre pessoas vulgares, a conversa incidir sobre esta ou aquela máxima, mantém-te em silêncio sempre que possas. Pois, caso contrário, um grande risco podes correr: vomitar de súbito o que ainda não digeriste. E se alguém te disser "Tu nada sabes", e caso não te sintas ofendido por tal despropósito, que saibas, começas a ser filósofo. 
Porque não é restituindo aos pastores "a erva comida" que as ovelhas lhes provam aquilo que ingeriram. Uma só coisa é verdadeira: uma vez que as ovelhas digeriram o pasto, elas oferecem ao exterior unicamente "a lã e o leite". Assim, pois, não ostentes opiniões, através de máximas, entre pessoas vulgares: melhor será que lhes mostres, pelo silêncio, a sapiência que ao longo do tempo foste digerindo..." [Epicteto, in "Manual"]
 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Alegria que estais em mim

O texto tem-me acompanhado no último ano: chama-se em alemão "Trauer und Melancholie" e foi publicado por Freud em 1916. Para compreender este ensaio é preciso ter em atenção que Freud utiliza as duas palavras-chave em sentido diferente do habitual. Assim, "luto" aqui não designa apenas o sentimento de pesar pela morte de alguém, mas o sentimento de perda de qualquer "objeto", real ou imaginado (uma pessoa, um tempo, um lugar, uma ideia). De igual modo, "melancolia" não é uma tristeza benigna mas equivale aqui ao conceito de "depressão". E a questão é a seguinte: como é que se passa (e como se evita passar) do luto à melancolia? Ou dito de outro modo: da tristeza (normal) à depressão (patológica)? Freud sugere que a passagem do normal para o patológico acontece por dois motivos: "um fracasso e um desvio". O sujeito "não consegue" desligar-se emocionalmente do objecto que perdeu, isto é, não faz o "luto completo", e a dado momento desvia o sentimento que tinha sobre o objecto, em direcção a si mesmo. É como se o sujeito perdesse não o objecto mas o seu "eu". Ele identifica o ego com o objecto e, uma vez derrubada a barreira da auto-estima, ataca o ego como se atacasse o objecto perdido. Cada lamento é uma acusação, cada acto masoquista uma raiva externa reprimida.  Um exemplo clássico deste personagem, é Hamlet, o doce príncipe condenado à sua irresolúvel angústia e aos seus inúteis teatros. Freud não considera que a melancolia seja totalmente negativa. É verdade que ela causa grande sofrimento ao sujeito, mas é uma espécie de "porta para a verdade". A melancolia, dada a sua "natureza introspectiva", ajuda ao auto-conhecimento.  Freud comenta com ironia que, às vezes, é preciso ficarmos doentes para nos conhecermos. Não é que as idéias do melancólico sobre si e sobre o mundo estejam "certas". Isso não importa: o que importa é representação que ele faz de si e do mundo. É porque existe essa representação que se pode atuar sobre ela. E nem é preciso que seja no contexto médico. Todos os melancólicos fazem gradual e periodicamente uma complicadíssima verificação para saberem se se querem separar ou não do objecto morto (uma pessoa, um tempo, um lugar, uma idéia).  Curiosamente, é a própria experiência da melancolia que "desobscurece" o que estava oculto, o que permanecia ambíguo e ambivalente. Freud explica isso numa formulação muito bonita: "o amor, ao refugiar-se no ego, escapou à extinção. E um dia, com o tempo, sai desse turbulento refúgio. E então, o sujeito que sofre, tornou-se um sujeito consciente... [De Pedro Mexia/ com imagem de meu outro querido Pedro, o Moreira!] "E se esses ontens fossem devorar os nossos belos amanhãs?" [Paul Verlaine] No ser humano, basta muito pouco para provocá-lo. Uma coisa de nada, um pouco de álcool no sangue, excesso de oxigênio, a cólera, o cansaço... Mas este estado é interessante na medida em que é orientável. Trata-se de um balanço, mas esse lança mão das regiões desconhecidas do nosso espírito. De facto, não há fundamentalmente nenhuma diferença, entre um homem intoxicado pelo álcool e um santo que se entregue ao êxtase. E no entanto há, apesar de tudo, uma diferença: a da interpretação. O momento de loucura é preparado por uma etapa onde o assunto é mergulhado numa espécie de "vacilação da consciência", de "excitação cerebral violenta". É esse momento que fabrica verdadeiramente o êxtase e lhe dá o sentido. Enquanto o êxtase em si mesmo "é cego". É o vazio total, sem ascensão nem queda. E é por isso que no momento crucial do êxtase, o santo e o intoxicado são semelhantes... estão no mesmo local... habitam o mesmo vazio! "O destempero é o maior substituto do argumento... e a sua função é fazer o melhor se parecer sempre pior, a fim de se obter mais estimas!"
Bonjour!

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Cadeira elétrica

"Há uma coisa mais dolorosa do que nunca poder ouvir a verdade - "é nunca poder exprimi-la", mesmo com a melhor vontade do mundo. Porque o que quer que digamos, o outro não escuta nunca a verdade que lhe queremos transmitir. 
Aquilo que sai dos nossos lábios e o que se passa na "alma" do outro, são sempre duas coisas diferentes. No instante seguinte deixa de ser semelhante - isso depende de coisas que nada tinham a ver com a tua verdade e a tua vontade de verdade - isso depende do que o outro queria ouvir, da situação em relação a ti, da falta de sabedoria do que te ouve, etc e etc... 
E a verdade por si mesma não tem nenhum valor, é como uma moeda inútil num país onde ela não é corrente! E aquilo que prevalece, mais frequentemente do que se pensa, não é a necessidade da "verdade" mas o desejo descontrolado de discutir... e destruí-la!"
[Arthur Schnitzler, in 'Relações e Solidão"] "Que um acontecimento projecte a sua sombra "no futuro" é um processo regular que devemos aceitar como tal; mais grave é o acontecimento que "lança uma sombra sobre o passado", mergulhando numa obscuridade súbita, fragmentos da vida que se encontravam já na luz e haviam por algum tempo conservado o seu brilho..." [Arthur Schnitzler², in 'Observação do Homem- Influências Negativas do Passado']
Bonjour!!!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Os volúveis

"O que é a experiência? Nada. É o número dos donos que se teve. Cada amante é uma coronhada. São mais mil no conta-quilómetros. A experiência é uma coisa que amarga e atrapalha. Não é um motivo de orgulho. É uma coisa que se desculpa. A experiência é um erro repetido e re-repetido até à exaustão. Se é difícil amar um enganador, mais difícil ainda é amar um enganado. Desengane-se rapaziada. Nenhuma mulher gosta de um homem tão "experiente". O número de amantes anteriores é uma coisa que faz um bocadinho de nojo e um bocadinho de ciúme. O "pudor" que se exige às mulheres não é um conceito ultrapassado — é uma excelente idéia. Só que também se devia aplicar aos homens. O pudor valoriza. 0 sexo é uma coisa trivial. É por isso que temos de torná-lo especial. Ir para a cama com toda a gente é pouco higiénico e dispersa as energias. Os seres castos, que se reprimem e se guardam, tornam-se "tigres" quando se libertam. E só se libertam quando vale a pena. A castidade é que é "sexy". Nos homens como nas mulheres. Mas a promiscuidade tira as vontades. Uma mulher gosta de conquistar não o homem que já todas conquistaram, saquearam e pilharam, mas aquele que ninguém consegue tocar. O que é "erótico" é a resistência, a dificuldade e a raridade. Não é a "liberdade", a facilidade e a vulgaridade. Isto parece óbvio, mas é o contrário do que se faz e do que se diz. 
Porque será escandaloso dizer, numa época hippificada em que a virgindade é vergonhosa e o amor é bom por ser "livre", que as mulheres querem dos homens aquilo que os homens também querem das mulheres? 
Ser conquistador é ser conquistado. E ninguém gosta de um ser conquistado..."
[Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa"]
[Nota: Imagem premiada com o Bronze Gaudi em Barcelona/2005 Original pertencente à Colecção Berardo- Modelos: Zé Diogo e Arlinda]

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Os nossos eus

"Esses eus de que somos feitos, sobrepostos como pratos empilhados nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras simpatias, pequenas constituições e direitos próprios - chamem-lhes o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) - de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e assim por diante; pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal, os diversos compromissos que os seus "diversos eus" estabelecerem consigo - e alguns são demasiado absurdos e ridículos para figurarem numa obra impressa..." [Virginia Woolf, in "Orlando"] "Enfrentei pela primeira vez o meu "ser natural" enquanto decorriam os meus noventa anos. Descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de "simulação" inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reacção contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio..." [Gabriel García Marquez, in 'Memória das Minhas Putas Tristes']
"A mentira, a mentira perfeita, acerca das pessoas que conhecemos, sobre as relações que com elas tivemos, a mentira acerca do que somos, acerca do que amamos, acerca do que sentimos pela criatura que nos ama e que julga ter-nos tornado semelhante a ela porque passa o dia a beijar-nos, essa mentira é das únicas coisas no mundo que nos pode abrir perspectivas sobre algo de novo, de desconhecido, que pode abrir em nós sentidos adormecidos para a contemplação do universo que nunca teríamos conhecido..." [Marcel Proust, in 'A Prisioneira']

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Uma coisa em forma de assim

"Há quem lhe chame, por brincadeira, besta célere para caracterizar a qualidade mediana (tomada por média) desse produto cultural (agora é tudo cultural!) e, ao mesmo tempo, a rapidez com que ele se esgota em sucessivas edições. O best-seller é um produto perfeito (ou eficazmente) projectado em termos de "marketing" editorial e livreiro. É para se vender - muito e depressa - que o best-seller é construído com os olhos postos num leitor-tipo que vai encontrar nele aquilo que exactamente esperava. Nem mais, nem menos. Os exemplos, abundantíssimos, nem vale a pena enumerá-los. Convém não confundir, pelo menos em todos os casos, best-seller com "topes" de venda. Embora seja "cabeça de lista", o best-seller tem, em relação aos livros "normais", uma característica que logo o diferencia: foi feito propositadamente para ser um campeão de vendas. A sua razão de ser é essa... e só essa. E aqui poderia dizer-se, recuperando o lugar-comum para um sentido sério, que "o resto é literatura". Estou a pensar em bestas céleres, não estou a pensar em "topes" de venda como O Nome da Rosa ou Memórias de Adriano. Estes últimos são boa, excelente literatura que, por razões pontuais e, muitas vezes extrínsecas à sua própria leitura, conheceram grandes êxitos de venda, o que é bastante diferente. Enquanto o best-seller é esquemático, quer dizer, não comporta mais do que o necessário, em termos de ingredientes, para comover ou motivar os simplórios, o livro "normal" nem pensa nisso. Nascido de uma necessidade interior, o livro "normal" chega ao leitor de "dentro para fora". O best-seller é exactamente construído ao contrário: chega de fora para dentro ou, até de fora para fora, visto que "a sua penetração no leitor" não é nenhuma, ao passo que a sua propagação é imensa. O best-seller é feito a pensar num leitor "espremido" por computador e serve a esse leitor tanto quanto lhe pode servir qualquer objeto de conforto. É um típico produto da chamada indústria cultural. Toma, exteriormente, a forma de livro para melhor se confundir com os verdadeiros livros. É uma espécie de ornamento (do espírito, da estante ou do caixote do lixo...) e cumpre, quase sempre, o seu papel, virada a última folha.O best-seller pode ser preparado com muita habilidade e, para os desprevenidos, constituir, até, uma obra de qualidade. A propaganda fará o resto. Mas isso será só ilusão. O best-seller tem a qualidade apenas necessária para não comprometer a quantidade que alcançou ou deseja alcançar. Esse é o seu verdadeiro objectivo: quantidade e mais quantidade. Hoje, que a literatura integra áreas cada vez mais vastas, uma há que não poderá integrar, a do best-seller, sob pena de se trasnformar no contrário de si mesma: o fabrico e o consumo de um produto que por acaso se chama "livro". [Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"]

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Os vícios

"A astronomia nasceu da superstição; a retórica, da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da ganância; a física, da curiosidade vã; e todas elas, mesmo a ética, do orgulho humano. 
As artes e as ciências devem portanto o seu nascimento aos nossos vícios, e nós deveríamos duvidar menos das suas vantagens se elas tivessem tido origem nas nossas virtudes. 
Quantos perigos! Quantos caminhos equivocados na investigação das ciências? Por meio de quantos erros, milhares de vezes mais perigosos do que a "verdade" é útil, não é preciso abrir caminho a fim de alcançá-la? O problema é patente; pois a falsidade admite um número infinito de combinações; mas a verdade possui apenas um modo de ser! "
[Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso sobre as Ciências e as Artes']