"Afirmo-te, antes de partires e antes de regressares da tua viagem em direcção ao Oriente, no muro longo onde ficou inscrito, fundo, o NÃO que nos move. Afirmo-te porque nos reconhecemos mesmo mortos, mesmo transformados.. Magnífica.. que decorei de ponta a ponta na memória, o teu olhar brilhante e escuro, o cordão que te cerca, os nós de que és feita, e é feita a nossa união, o oceano em que navegas e naufragas para ressurgires completa, depois da forma do mundo, no azul da montanha..
Mar azul-vermelho queimado de arestas, mar de dedos frios, de velas sibilinas na noite de cristal, mar de sonâmbulos esquecidos a medir o espaço com fitas de estrelas, mar de passageiros estranhos e abismados, mar de casas altíssimas onde habitam as cidades.. MAR para que não me chegam os olhos, mar branco de nuvens sobrepostas para lhe podermos passar por cima, mar de esquecimento, de objectos sensíveis e distintos, mar onde guardei o aquário azul que trago até hoje na memória..
E só hoje te espalho para o mundo MAR, onde é possível e provável o envenenamento total da espécie, onde descanso a minha mão esquerda sobre uma pantera negra e todos os dias mergulho em fogo.. Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso – MAR- mar com uma bala direita no cérebro, mar sem apoio em nenhum ponto do espaço, mas preso apesar de tudo, numa enorme teia diabolicamente construída para conseguir ser livre, mar de submarinos insondáveis que navegam o infinito do mar, mar espacial de sons, de cores, de imagens, de mil anos passados que percorremos..
MAR que flutua no MAR abusivamente medonho, amor esquecido, amor distante, amor insolente - Raomomar- O teu corpo envolvente vestido de água, os teus braços em túnel, que trazes desde a infância, o pelourinho azul que se ergueu na praça ampla e fotografei dez vezes, dez anos volvidos..
Ficar depois energicamente deitado até à descoberta da máquina de quem só eu tenho o projecto, até que me rebentem os pulmões de tanto descanso e os meus pés criem bichos multiformes e ganhem raízes, até a caridade e o crime serem de qualquer modo um arrojo impossível, até dizer a minha enorme e persistente capacidade de nojo, até me crescerem as barbas e com elas amarrar-me à cama onde me encontro deitado, e ficar a arquitectar crimes e caridades..
Até tu vires lenta lavar-me os pés inchados e vermelhos de tanto descanso, de tanto não mexer na ilusão, até tu vires ler-me as minhas idéias rascunhadas na minha outra Liberdade, contar-me histórias da minha infância sem omitir um detalhe, recitar-me todos os meus poemas e todos os poemas do princípio do mundo, e descrever-me a nossa pesca à mão das trutas que navegam no Rio..
Ficar energicamente deitado até que os prédios cresçam e arranhem o céu, até nos esquecermos, totalmente, dos que existem e para que existem, enquanto nos envolvemos de sedas, de veludos e plantas aquáticas, e assim terminarmos mais depressa de ir contra os nossos dias.. E assim PERDERMOS TUDO – perder-te a ti- Infinita- construída de estrelas, de núvens, de oceanos, de pérolas esquecidas, construída de histórias e corsários loucos..Saber-te depois distante entre as pedras do meu sonho, saber-te RAINHA nas árvores da noite, MINHA em todas as histórias da minha infância, LOUCA nos olhos diabolicamente frios que me espreitam, no sonho do monstro que habitamos, saber-te ÁRVORE que sobressai nítida na inacreditável superfície, e estende os ramos em baloiço, e as raízes para o outro lado da superfície sem espessura, onde os homens andam, ao invés de pés, para o espaço, e cobrem-se de mares para dormirem nas montanhas AMOR – nunca como agora o Amor foi tão significativo, tão único baluarte da realidade real, da negação negada, da perda total que procuro.. Saber-te ASSIM até saberes isso, completamente, como sabes ser uma estrela o ponto cintilante que criaste, como sabes ser verdade, a verdade que cegamente - no nosso sonho amor - no nosso sonho tu afirmaste..." [António Maria Lisboa,in Ossóptico, parte 2, 1952]
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