[Machado de Assis, in "O Espelho"]
domingo, 31 de maio de 2009
D'you know what I mean?
"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem dar de ombros, tudo... não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, muitos objetos, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que uma das perdas, implica a da existência inteira..."
Lying in the sun
"Diz adeus com as duas mãos como as crianças... A testa morna com o sol da manhã e o seu perfume leve como a espuma do banho que não ardeu em lado nenhum... E o brilho dessa luz que vinha nos olhos e nas tais mãos, que eram duas mas eram poucas para o tamanho das saudades que já adivinhavas... Tento achar sinais para seguir a direção do que sonho e não do que vivo!"
["Estranho amor"- by João- vídeo Lying in the sun!]
"O caminho alternativo sempre me fascinou. Desde o trajeto para a escola primária até ao atalho diário para a casa de cafés, sempre os desvios me ajudaram a viver. Quando pequena, e com galochas novas, escolhia criteriosamente as poças que, numa excitante rota de colisão, se atravessavam à minha frente. Já agora, e sem o mínimo pejo para com os amortecedores, escolho todos os dias um rumo que acrescente sempre dez minutos à minha manhã... Sem mapa, porque já não é preciso, percorro de olhos fechados as coisas que me levam ao alto. Já as que me anulam, essas não mais me encontram..."
Bonjour!
sexta-feira, 29 de maio de 2009
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Quero ser velhinha em Budapeste
"Não é extraordinário pensar que dos três tempos em que dividimos o tempo - o passado, o presente e o futuro -, o mais difícil, o mais inapreensível, seja o presente?
O presente é tão incompreensível como o ponto, pois, se o imaginarmos em extensão, não existe; temos que imaginar que o presente aparente viria a ser um pouco o passado e um pouco o futuro. Ou seja, sentimos a passagem do tempo. Quando me refiro à passagem do tempo, falo de uma coisa que todos nós sentimos. Se falo do presente, pelo contrário, estarei falando de uma entidade abstracta. O presente não é um dado imediato da consciência.
Sentimo-nos deslizar pelo tempo, isto é, podemos pensar que passamos do futuro para o passado, ou do passado para o futuro, mas não há um momento em que possamos dizer ao tempo: «Detém-te! És tão belo...!», como dizia Goethe.
O presente não se detém. Não poderíamos imaginar um presente puro; seria nulo. O presente contém sempre uma partícula de passado e uma partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo..."
quarta-feira, 27 de maio de 2009
To move on
"A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-elaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo, sufocando-a com um saber artificial e morto, e orientando-a no sentido de finalidades que lhe são estranhas. A criança é sem finalidade, cria brincando e crescendo suavemente; se não for perturbada pela violência, não aceita nada que não possa verdadeiramente assimilar; todo o objecto em que toca vive, a criança é cosmos, mundo, vê as últimas coisas, o absoluto, ainda que não saiba dar-lhes expressão: mas mata-se a criança ensinando-a a ater-se a finalidades e agrilhoando-a a uma rotina vulgar a que, hipocritamente, se chama realidade..."
[Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades']
"Não sou um tempo ou uma cidade extinta. Civilizei a língua e foi resposta em cada verso. E à fome, condenaram-me os perversos e alguns dos poderosos. Amei a pátria injustamente cega, como eu, num dos olhos. E não pôde ver-me enquanto vivo. Regressarei a ela com os ossos de meu sonho precavido? E o idioma não passa de um poema salvo da espuma e igual a mim, bebido pelo sol de um país que me desterra. E agora me ergue no Convento dos Jerônimos o túmulo que não morri. Não morrerei, não quero mais morrer. Nem sou cativo ou mendigo de uma pátria. Mas da língua que me conhece e espera. E a razão que não me dais, eu crio. Jamais pensei ser pai de santos filhos..."
[Carlos Nejar, in "Luiz Vaz de Camões" and Brokeback Mountain clip!]
Bem vindos!
terça-feira, 26 de maio de 2009
My babe just cares for me
"São as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor que desabrocha... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca mais se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras... Como pedrinhas, as palavras luminosas permaneceram aqui, resplandecentes..."
[Pablo Neruda, in "A Palavra"]
Bonjour!
domingo, 24 de maio de 2009
L'excessive
" Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os outros homens. Como Cornelio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demónio e sou o mundo, o que é uma forma cansativa de dizer que não sou!"
(...) A morte, ou a sua alusão, torna os homens delicados e patéticos. Estes comovem-se pela sua condição de fantasmas. Cada acto que executam pode ser o último. Não há um rosto que não esteja por se desfigurar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perdido. Entre os Imortais, ao contrário, cada acto (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o claro presságio de outros que, no futuro, o repetirão até à vertigem.
Não há coisa que não esteja perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é primorosamente gratuito. O elegíaco, o grave, o cerimonial, não contam para os Imortais. Homero e eu separamo-nos nas portas de Tânger... Creio que não nos despedimos!"
[Jorge Luís Borges, in "O Imortal"]
" Endureçamos a nossa bondade... Já não há olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não, flexíveis e submissos. Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre - ou quase sempre - mentirosa.
Alguma vez temos de deixar "de mentir", porque, no fim das contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim, encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estuta estupidez.
Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta, porque é a própria arma da vida!"
[Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer"]
This is mine, you can't take it
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Obrigada pelos 5.000 mergulhos!
HoT & ColD!
"Is a reminder of the strength and pain of being young...
That it can't come again,
But is for others undiminished
somewhere..."
"É lembrança da força e da dor de ser jovem...
Do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno,
nalgum lugar..."
[Phillip Larkin and Ukrainian Band!]
Bonjour ilha! :)
terça-feira, 19 de maio de 2009
Life is wonderful
"Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel»... Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura.
Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.
Aquela idéia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a idéia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa idéia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se.
E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo "sobre o outro" e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. Falamos muito ao longo destes últimos anos dos "DIREITOS" humanos e simplesmente deixamos de falar de uma coisa muito simples, que são os "DEVERES" humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo.
E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias..."
[José Saramago, in "Diálogos" e Jason Mraz, in Life is wonderful]
Bonjour!
sábado, 16 de maio de 2009
Life is a short trip
"Do alto de uma montanha, inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que não lhe podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que, o que eu ali via, era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago.
Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.
Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda.
Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão..."
[Machado de Assis, in 'Memórias Póstumas de Brás Cubas']
Bonjour!
quarta-feira, 13 de maio de 2009
Supreme game
"É bem possível dizer a verdade e não ser verdadeiro ou não ter uma relação verdadeira. E isto acontece mais do que se pensa. Quando não atendo à condição do outro, à sua sensibilidade, linguagem, idade, etc., posso dizer tudo certo e o outro ficar mais longe e mais desconfiado, e a relação não ser humana, nem verdadeira. A verdade humana é ser construtivo na relação. Da verdade lógica também os computadores são capazes..."
[Vasco P. de Magalhães, in "Não Há Soluções, Há Caminhos"]Bonjour!
terça-feira, 12 de maio de 2009
Lost for words
"Viver era como correr em círculo num grande labirinto, esse género de labirinto para crianças que se vê em certos parques de jogos modernos... em cima de uma pedra no meio do labirinto há uma pedra brilhante; os míudos chegam com as faces coradas, cheios de uma fé inabalável na honestidade do labirinto e começam a correr com a certeza de alcançarem dentro de pouco tempo o seu alvo.
Corremos, corremos, e a vida passa, mas continuaremos a correr na convicção de que o mundo acabará por se mostrar generoso para quem correr sem desânimo e quando por fim descobrimos que o labirinto só aparentemente tende para o ponto central é tarde demais - de facto, o construtor do labirinto esmerou-se a desenhar várias pistas diferentes das quais só uma conduz à pérola de modo que é o "acaso cego" e não a "justiça lúcida" o que determina a sorte dos que correm..."
[Stig Dagerman, in 'A Ilha dos Condenados' ]
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Dearest
"Hoje roubei todas as rosas dos jardins
E cheguei ao pé de ti de mãos vazias..."
[Eugéniõ de Andrade]
Creep
"Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, puré de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los...
Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira.
Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.
Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.
Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incómodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhes os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passa a espectador enfastiado do espetáculo... Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, e outro, num mecanismo de monotonia... explosiva.
Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isto, entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa?
Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana.
Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira... Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos..."
[Carlos Drummind de Andrade, in 'O Poder Ultrajovem']
Bonjour!
sábado, 9 de maio de 2009
Watch over me
"Há o medo de coisas que vêm da fantasia de cada um. A imaginação constrói, avoluma e, por vezes, aprisiona. Mas não vamos negar o medo que é acionado por um instinto de preservação. Esse é seu parceiro. Por exemplo... é tarde da noite, você está só, assistindo TV, quando uma porta bate. Não dá outra: o coração dispara, os músculos se enrijecem e todos os sentidos ficam em alerta. Alguns segundos depois, quando percebe que era só o vento – e não um acontecimento incomum –, é que você volta a relaxar.
Isso acontece porque em momentos de perigo iminente seu cérebro aciona um mecanismo ancestral que serve para torná-lo mais apto para a fuga ou o combate. O objetivo disso é preservar a vida. E o gatilho que dispara esse circuito é um velho conhecido: o medo. Aliás, ele não é algo exclusivo do ser humano. Todos os animais compartilham essa emoção, e é graças a ela que a gazela sai correndo quando vê um leão.
Esse tipo de medo é considerado positivo e necessário porque serve para nos proteger. É ele que nos faz, por exemplo, olhar para os dois lados antes de atravessar a rua – e não ser atropelado – ou impede, diante de um penhasco, que alguém se atire em queda livre, sem receio. Aliás, o mecanismo biológico por trás de qualquer tipo de medo (do bom e protetor àqueles que nos apavoram) é igual. O medo provoca uma reação em cadeia no cérebro, que tem início com um estímulo de estresse, como uma platéia lotada ou uma batida repentina na porta. "Tudo isso acontece para que a gente possa correr adoidado para fugir de um perigo ou, se for o caso, enfrentá-lo com todas as forças". Se o cérebro recebeu um sinal de alerta, vai reagir como se estivéssemos frente a frente com o leão mais feroz da África, mesmo que se trate só de uma inofensiva barata... "
Os motivos pelos quais uma pessoa tem um medo maior ou menor diante de um inseto, por exemplo, ou não tem coragem de enfrentar uma platéia, variam de pessoa para pessoa e dependem da história de vida de cada um. Mas a maneira de tentar superá-los é bem similar. “É necessário acolher o medo, em vez de negá-lo ou diminuir sua importância, pois só assim se torna possível lidar com esse sentimento”.
Parece difícil? Nem tanto. É só lembrar de todas as vezes em que você já ficou muito triste. Não foi melhor assumir que estava mal mesmo e chorar tudo o que tinha para chorar? Com o medo, é a mesma coisa...“O melhor é encará-lo de frente!"
Medo de não encontrar a cara-metade. Por trás disso, pode estar o medo da perda, ou ainda o temor de não ser suficientemente bom.
"Quem não se sente digno de receber amor e de ser valorizado, dificilmente consegue acreditar que merece coisas boas"!
A armadilha desse tipo de medo é ficar agradando os outros o tempo todo e assim se esquecer de si mesmo. "Quem se sente não merecedor de afeto muitas vezes acaba sendo submisso nas relações pessoais". É um passo para ficar roendo as unhas toda vez que está sozinho, achando que nunca mais vai encontrar alguém. Não há solução mágica para aprender a se valorizar e ser mais autoconfiante. De novo, o melhor caminho é a busca do autoconhecimento. Sem isso, é muito difícil lidar com medos tão primitivos, que podem ter surgido lá atrás, na infância.
Aprender a lidar com seu medo é um processo longo. Não adianta chegar à consulta e falar que quer resolver seus medos e ponto. A análise é um caminho que em muitos momentos envolve dor... Você precisa se expor, conversar sobre, abrir a alma, pois o papel das pessoas é, também, dividir conhecimento. E o mais importante, não é querer matar os seus medos, mas olhá-los, admitir que existem e aprender a lidar com eles!"
Bonjour!
[Texto: Carla Aranha e Ana Holanda]
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Hamlet!
"Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, se ousasse matar-me, também me mataria... Ah, se ousares, ousa! De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas a que chamamos o mundo? A cinematografia das horas representadas por atores de convenções e poses determinadas, o circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces? Talvez, matando-te, o conheças finalmente... Talvez, acabando, comeces... E, de qualquer forma, se te cansa seres... Ah, cansa-te nobremente, e não cantes, como eu, a vida por bebedeira, não saúdes como eu a morte em literatura!
Depois, lentamente esqueceste. Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. Duas vezes no ano pensam em ti. Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, e uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... Se queres matar-te, mata-te... Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ... Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida? Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera as seivas, e a circulação do sangue, e o amor? Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem. Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes. És tudo para ti, porque para ti és o universo, e o próprio universo e os outros satélites da tua subjetividade objetiva. És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
[Álvaro de Campos]
[The Killers - Human]
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Voyage, voyage
"É no outono que Porto Alegre é mais bonita. Quem conhece a cidade nessa época, apaixona-se perdidamente. Diria Quintana que no outono o céu de Porto Alegre é lilás. É mesmo. A cidade ganha uma outra luz, os dias são secos, o ar é propício a carregar os cheiros das folhas, da grama, do rio, das pessoas que passam, dos cafés recém coados, dos bolos de chocolate ainda quentes... As pessoas já saem com casacos pela manhã, mas não há o desconforto do frio de um dígito. Há o acolhimento das primeiras lãs, do cashemere, um cachecol mais leve, um xale. Depois, conforme o dia vai ficando alto, o calorzinho chega, espanta o geladinho das sombras, aquece num abraço. A cidade se espraia sob nossos pés e pede que a percorramos sem pressa, sem automóvel, sem ruído. Pede que a escutemos com atenção, sua música, suas canções. Eu sempre ouço Nei Lisboa pelas ruas no outono de Porto Alegre. E Vitor Ramil. No outono Porto Alegre é mais minha, é mais clara, é mais azul...
É quando o chimarrão nos parques cai melhor, é quando as pessoas são mais bonitas, mais felizes, tem um sorriso pronto e vontade de olhar em volta... para os pássaros pousados nos fios elétricos, nos postes, em revoada ao entardecer! O outono de Porto Alegre me traz uma solidão menos triste, mais límpida e eu fico mais inteira. Deve ser a sensação ingênua de que o inverno não volta mais, que junho está muito longe, que a vida se resume a hoje, sob o céu lilás de Porto Alegre..."
Boa viagem, Caio... com todo meu amor!
[Clip trocado a pedido do homenageado viajante, rs!]
[Trecho de Madame Tussaud, do M.Mean!]
domingo, 3 de maio de 2009
A miséria dos minutos
"Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento,— a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo..."
[Herberto Helder]