sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Scõrpion

45 não tem mais que o som do seu sentido, o 45 não é a primeira letra da palavra quarenta, o 45 é esculpido de sentidos e essa é a sua forma...
45 não se lê 45, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil árvores ou céu de punhais...
45 lê-se país e mar e céu esquecido e memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, 45 lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu olhar
de menino...
45 não é esta caneta de tinta preta, não é esta vóz, não é a primeira letra da palavra quarenta...
45 não se escreve com letras... escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos,
gritos e incertezas...
45 existe para não ser escrito, como eu existo para não ser escrita, para não ser entendida, nem sequer por mim própria, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou...
*
Aos escõrpianos del mondo :)
* [Montagem-homenagem ao Poema de José Luís Peixoto, outro amigo do burgo!]

Tuas tigelas

Recolho teus ombros de dentro dos casacos, dobro braço, antebraço, cotovelo, tudo que o lembre, que o faça pairar no ar, assim como teu cheiro, que retiro com máscaras e nadadeiras, de dentro de todos os perfumes. O cancelo dos meus dias santos, de todos os espasmos e esquinas, arrancando boca e paladar das tuas tigelas agarradas em minha mesa, todas as manhãs, e decreto tua miserável partida. Nada restou de tí. Movo ensaboado todos os nojos e a água limpa móe pétalas de dores! 
*

Olhos cegos

Tinha os cabelos cansados e as vestes tristes distanciadas do fóssil dos seus zêlos.
Ofertava ave-marias aos descartados, monologando feridas com a vóz polimorfa da desolação. 
Enquanto tudo era destruído, serviu seus mortos na mesa da antevéspera,
alternando o muro e a reza.
As molas indulgentes dos relógios suplicavam suas limalhas e, o tempo, desmedido,
jorrava bombas aos penitentes.
Empoeirado, encaixotou maciamente suas crianças, como framboezas nas bancas do mercado 
E despediu-se, apiedado das sombras, tornando-se noite 
aos olhos cegos da guerra!
*

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Lavas de piano


Uma palavra que se deve esquecer, um pássaro que não se observou por ausência, uma paixão eclipsada de valores inúteis que o amor nunca irá tocar.
E os dias são ilegítimos quando as pessoas são supostas.
Um bom momento é sempre um fado doce e contraditório, arrastado de desejos, onde há sempre um obstáculo ferindo instâncias, enquanto, a felicidade, perece com as peras.
Se há infelizes, ninguém se reconhece neles, imunes de suas próprias tempestades. 
Mas há sempre um dano apontado para o muro inclinado 
sobre o cão miserável de nossos afetos.
A mediocridade, embalsamada de abismo e vulgo, encobre nossos prejuízos.
Mas ninguém se livra de seus vulcões quando não se sonha lavas de piano, que nos movam todos os caprichos, soprando a pólvora da contemplação dos sentidos.
E assim nos tornamos menos cinzas, menos mesquinhos, menos supérfluos, enquanto ainda se teme o piano, o pássaro, a pera e o fado, mas não se teme a ira magmática em estado de guerra, que a psique estilhaça na pata do cão! 
*

Samovar prata

"Meço a impressão que as coisas gravam em tí à sua passagem...
Impressão que permanece, ainda depois delas terem passado!"
*
[O caráter psyco-lógico do tempo - por Santo Agostinho]

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Chá de flores

[Pintura de Ann Hardy]
Derramo chá na soleira da velha porta que range as mesmas manhãs.
Não ouço o ruído dos meus passos nas tábuas e decresço 
dentro de chinelos e axiomas.
Sento-me tão pensativa que permaneço suspensa na cozinha,
como a própria terra.
Sobre a mesa o bolo interrompe peso e gravidade 
com aroma repetido de consenso e milho.
Como um vaso de madresilvas, furado no fundo a escoar a água contida, tomo chá de flores múltiplas até que escoem, também,
as minhas agonias.
Brotam cabeças sobrepostas em meus pomares e rastejam sentimentos que se alastram, como trepadeiras, até o topo dos telhados.
Onde a memória rumina a plena integridade do fruto, 
que os pensamentos, tristemente, 
apodrecem!
*

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Brisa ártica

Desaperto calmamente meus parafusos, minhas melancolias não-essenciais,
e sou uma brisa ártica.
Não a água que se arrebenta contra os rochedos.
Recolho as cinzas de todos os desaparecidos do meu convívio, ausentes de seus antigos lugares.
Pessoas que não pude reconstruir. Lugares que não pude recuperar.
Teias de aranha e môfo no alfabeto da minha história.
História transformada em triste remendo.
Remendo de vida. Vestígios de letras.
Farrapos de gente.
E vogais!
*

O perfil de Isabela!

Senhor, Me ajude a nunca desistir de ser mulher.
Coloque um espelho no meio do caminho entre a lavanderia, o supermercado, o sapateiro... E que, ao me olhar, eu goste do que vejo.
Não deixe que eu passe uma semana sem usar rímel, um salto bem alto ou um jeans mais justo. Proteja meus cabelos do vento, os brincos e anéis de olhares invejosos. Nunca deixe faltar na minha vida comédias românticas e boas depiladoras.
Se eu tiver vontade de chorar, faça com que eu chore um dilúvio. E que tenha saído de casa sem pintar os olhos.
Para cada dia triste, me dê uma vitrine de roupas lindas. Já que eu nunca pedi milagres, faça com que as minhas celulites sejam ao menos discretinhas.
Me dê saúde, tempo livre e silêncio... E que nunca falte perfume na minha gaveta. Nos engarrafamentos, faça com que eu ligue o rádio e esteja tocando minha música preferida.
Me dê forças para comer mais saladas, mais frutas. Cegue meus olhos para as sujeiras nos cantos. Ajude para que eu chegue ao trabalho inteira.
Em dias difíceis, me dê persistência para seguir na dieta. Dê também firmeza para os seios. Proteja minhas poucas horas de sono e não me julgue mal, caso eu não acorde na hora. Não deixe que minha testa fique tão franzida a ponto de parecer uma saia plissada. E eu, uma louca estressada.
Faça com que o sol seja meu personal trainer e meu complexo vitamínico,meu carregador de baterias. Mas quando eu pedir um diazinho de chuva, não me pergunte por quê.
Para cada batata quente no trabalho, me dê um café recém-passado. Entenda que, quando rezo para cancelarem uma reunião, não é gastar reza à toa, pode ter certeza.
No meio de tudo isso, faça com que eu ainda ache tempo para: - virar namorada de novo; - ir ao cinema; - jantar fora; - dormir abraçadinha.
Ilumine o espelho do banheiro e proteja meus cremes e segredos... Ajude a não faltar gasolina e não furar o pneu e, por favor, afaste os motoqueiros do meu retrovisor.
Senhor, por pior que seja meu dia... faça com que ele termine e não EU.
Amém!
Isabela M.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Otto Maria Carpeaux

Jornalista e crítico literário austríaco, chegou ao Brasil em 1939, refugiado da Guerra, e por aqui ficou até sua morte em 1978, onde deixou de herança um rico arsenal de inquietações literárias, políticas, sociológicas.
De Napoleão a Vinicius de Moraes, passando por Kafka, T.S. Eliot, Machado de Assis, James Joyce, além da análise, no calor da hora, do filósofo Jean-Paul Sartre, Carpeaux, de forma clara e intensa, sem abusar na erudição ou no hermetismo, transitava pelos mais diversos meios e pensamentos.
A utilização da metáfora e do total domínio do campo semântico são marcas características dos textos de Carpeaux.
''Não se faz crítica literária em jornal para desempenhar um papel de verdadeira ou falsa importância nos círculos limitados da vida literária. Tenho o direito de elogiar 'a vontade de escrever simples', porque já pequei também muitas vezes contra essa regra. A linguagem técnica, constantemente empregada, inspira a suspeita de servir como a roupa imaginária do rei, no conhecido conto de Andersen:
'Os cortesãos lhe elogiaram a roupa, mas enfim se descobriu que o rei estava nu''! 

Carpeaux - 15/10/1960

Texto publicado no caderno "Idéias" do Jornal do Brasil em 2006.

Campos e gestos

Perdí mãe, perdí pai, mas não o gosto pelas margaridas, pelo riso e a palavra.
Meus pés herdaram o infinito das ruas, onde carrego todos os sons de pássaros contidos neles.
Meus olhos, sublinhados de dia a dia, suprimem dores nas retinas do jardim.
Enquanto minhas mãos, tantas vezes vazias, 
semeiam vasos cíclicos a me encher 
de campos e gestos.

domingo, 26 de outubro de 2008

José Luís Peixoto - Pt

[Pintura de Norman Rockwell/ Olavo Saldanha]

"...escondia até de mim a certeza de que o tempo iria tomar alguma decisão... o tempo mistura a verdade com a mentira...
o tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira...
aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido, e com aquilo que me contaram que aconteceu...
a minha memória não é minha... a minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento..."

José Luís Peixoto

José Luís Peixoto-Pt

[Pintura de Norman Rockwell/Olavo Saldanha]

"...as histórias se desprendiam do seu corpo como
se não houvesse um fim para as histórias que
se podem contar..."

José Luís Peixoto

sábado, 25 de outubro de 2008

Calçadas

O vento sopra passos em chão violentado de fugas, que nos impede a poesia infinita espalhada nas calçadas.
E não se está só diante dos próprios pés, quando libertamos o movimento indeciso que nos dá a possibilidade de todas as danças.
Refletimos humores nos espelhos das vontades coibidas e suspendemos bailarinas na ponta oposta de todos os temores, dissipando pés de covardias
inúteis.
Um pinheiro se esvai nas nuvens e sua desigualdade contemplativa, possui uma delicadeza inocente que nos aponta um caminho para o alto.
Num abandono verde, elevado de generosidade, chora a desigualdade no homem de bem, contrapondo a própria vida,
ferida,
no tempo que não suprimimos.
E poesia não é a boca sem pêndulo, rasa de conceitos, nem mitos com olhos pasmos de fenômenos.
Mas a sublimidade invisível suspendendo gigantes no ar, que o homem esvaído de sí não percebe,
cego de pinheiros, tombado de calçadas.
*

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Amêndoas e séculos


[Arte de Fernando Bonafé]


Clausuro o sopro metálico em ouvidos fantasmas e desço degraus de clarins colhendo amêndoas e séculos.

Pantagruel soltando folhas pelas janelas, inunda de outono os jardins de Rabelais, enquanto Desdêmona, agoniada,
varre espinhos de um Otelo sem flor.

Nas praças do mercado, Godiva folheia as páginas de seu cavalo, que entoa cânticos aos Rasputins.

Lampiões prematuros apagam dezembros de Mozart, retorcendo flautas mágicas, réquiens e aquatofanas, num funeral triste e inacabado, aplaudido apenas por um cordial cachorro.

E enquanto pontes se levantam para dar passagem às barcas e fadigas, 
passa-se, invisível, a vida!

(SK)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Barulhos























O mundo é um borrão ou não tenho mais contorno. 
As minhas alegrias púrpuras, meus bosques ensolarados de livros e existências, não segregam minhas dores.
Nada se move. Não há argumentos sobre os móveis, nem prazer sob os tapetes a me causar primaveras duradouras.
De minhas vidraças inesperadas defenestro o malogro das estações numa nevasca contínua de topázios e idéias.
Ainda assim gosto da vida e suas sinas, pois se a casa silencia ausências e aromas, dentro de mim habitam todos os barulhos!

BULEVAR!

A vegetação muda de aspecto quando te ausentas.
As tardes de chuva forte nas alamedas e mesmo as águas insuspeitas de meus musgos negligenciam-me trégua.
Venho repetindo teus versos densos em cada rastro de tuas viagens, num murmúrio natimorto, cujo tempo, breve e frio, tem a sonoridade da dúvida.
Pairo no ar.
Não tive créditos que me concedecem o mundo, mas condensei em meus ramos todas as tuas euforias embebedadas de vida e café.
Rimos o riso dos pássaros, sublimados de croissant's e verdades, e constantemente renascemos, mesmo dissipados de nosso imenso bulevar.
*

Candeeiros


Cerro punhos e paredes gritam as dores de seus candeeiros, sempre e indefinidamente jogados no chão de chumbo. Violo túmulo e a credencial de meus mortos.
Adoeço.
Invoco divindades, deusas, reis, vasculho fígado, rins e pulmões.
Não encontro um só coração.
Sucumbo ao calabouço claustrofóbico e minhas vísceras bóiam ocas diante do olhar arcano. Vasos canopos. Serão quatro as verdades que carrego?
Blindado, o coração fica retido no centro de quatro caixas. Uma dentro da outra.
Feito a mentira!
*

Cêsto de sombras


Deixe o vento fomentar tuas hastes inconclusas e improvise o festim desta noite.
Não é assim tão tarde quando tens tua terra lavrada e oxigênio para teu momento presente.
Derrame trigo em teus cêsto de sombras, serenamente, assim como suportou tuas verdades assadas com maçã e mel na mesa da agonia.
Vista-se de borboleta e beba na ante-sala da inquietude o último gole de teu concerto inacabado. Após o brinde, dance com flamingos todos os risos afogados na sopeira dos parvos e, acrescida de sí, germine lilases e jasmins, que já é dia.
*

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Botes e remos

Intensifico enseadas, vestida de sal.
Sobrevôo a nudez encovada das rochas, a velhice e a maturidade do mar. Sou tempo e ave.
Meus assombros e essências, circundados de recifes de coral, seguem a ampla travessia que me adorna o riso, o caos, a brisa e o soneto.
No grau inteligível da vastidão entre tua carne e a minha, transponho saudades fincadas na veia. Sou rota e pergaminho.
Mas se tempestades abrirem fendas doloridas em meus cascos, sangrando-me rubís,
me vestirei de botes e remos!
*

José Luís Peixoto-Pt


"Não estranhei seu silêncio porque trazia muitas palavras comigo...
Tinha palavras, frases inteiras, a deslizarem dentro de mim...
Tentei entrar nesse mundo por baixo de suas pálpebras!"

José Luís Peixoto