terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Rente ao chão


O pátio é agora um quadrado de luz. Sem gatos nem sombras; apenas o silêncio das paredes, intacto. Rente ao chão, um exercício de entropia: tabuletas gastas, loiça em cacos, o balde cheio de pregos tortos, aguarelas refeitas pela chuva, baús que guardam segredos, estantes rendidas à poeira, um par de asas falsas, a túnica com rasgões e duas malas de couro manchadas pelo tempo, vazias.
Ao canto, o relógio partido e os ponteiros soltos. Um deles aponta para as nuvens, lá muito ao alto. O outro aponta para nós, para aqui, para estes inumeráveis labirintos.

[José Mário Silva, in Nuvens e Labirintos, 2001]


Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco mais.
Palavras que te quero confiar, para que não se extinga o seu
lume, o seu lume breve.
Palavras que muito amei, que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

[ O sal da língua/ Eugénio de Andrade]

Ao meu pai e minha mãe!

domingo, 28 de dezembro de 2008

Age quod agis

[Lat: Presta atenção no que fazes]

"Temos que descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de descobrir o herói, assim como o parvo, que reside em nossa paixão pelo conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria." 

[Nietzsche]


"O amor é uma troca entre duas correntes de energias, dois pólos opostos mas complementares. Não é o corpo físico que inspira o amor, muitas vezes ele só intervém no fim do processo como um culminar, só vem na sequência. O que inspira o amor é algo invisível. Em geral, dá-se mais importância ao corpo do que aquela que ele possui realmente. Mas colocados lado a lado, os cadáveres de dois seres que se amaram, abraçam-se? Não, mas as suas almas, que são vivas, continuam a relacionar-se. É a vida nas criaturas que provoca atracção ou repulsa. Portanto, antes de os corpos serem atraídos um para o outro, houve correntes fluídicas que os levaram a aproximar-se; os corpos apenas seguiram o movimento, bem no fim deste processo." 

[O. Mikhaël Aïvanhov]

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Stone


"A maior parte das pessoas realmente não nos interessa, penso eu o tempo todo, quase todas as que nós encontramos não nos interessam, não têm para nos dar senão a sua mesquinhez das massas e a sua estupidez, e com isso nos aborrecem sempre e por toda a parte e, naturalmente, não temos por elas o mínimo interesse."

[Thomas Bernhard (1931-1989) "in Derrubar Árvores - uma irritação"/Lisboa: Assírio e Alvim, 2007]


"Em todos os ramos
por onde pousaste
reclinei-me de frio."

[Armando Artur/ poetas revelados/ 1962]


"A poesia está guardada nas palavras- é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por esta pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios."


[Poema de Manoel de Barros]

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

à vol d'oiseau

"Segui com os olhos um inseto negro que fazia no ar um sulco espumoso e gelado. A perpétua juventude do mundo me deixa sem ar. Coisas que eu amei desapareceram. Muitas outras me foram dadas. Ontem à tarde, eu subia o Bulevar Raspail e o céu estava carmesim. Pareceu-me caminhar num planeta estrangeiro onde a relva fosse violeta, a terra azul. As árvores abrigavam o avermelhar de um anúncio a néon. Andersen aos sessenta anos maravilhava-se por atravessar a Suécia em menos de vinte e quatro horas quando em sua juventude a viagem durava uma semana. Conheci deslumbramentos semelhantes: Moscou a três horas e meia de Paris! Reflexos, ecos se encadeando ao infinito. Descobri a doçura de ter atrás de mim um longo passado. Não tenho o tempo de me narrar, mas às vezes, de improviso, eu o vejo em transparência ao fundo do momento presente: ele lhe dá sua cor, sua luz, como as rochas e as areias se refletem na cintilação do mar. Antigamente, eu me embalava com projetos, com promessas. Agora, a sombra dos dias mortos aveluda-me emoções e prazeres."

[A Mulher Desiludida - Simone de Beauvoir]

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O tempo e o quilômetro

"... quando me lembro de ter 4 anos e de estar a brincar no quintal, não sei onde terminam as imagens que os meus olhos de 4 anos viram e que permanecem até hoje comigo, ou onde terminam as imagens que inventei sempre que tentei lembrar-me desta tarde... ou quando era pequeno e me sentava ao lado do tempo..." 

[José Luís Peixoto]

" Corro o mais depressa que consigo, como se fugisse daquilo que mais me assusta, como se fosse possível fugir daquilo que levo no interior da minha pele e vai comigo para todos os lugares... corro... como se pudesse deixar-me prá trás... tão depressa que, num momento, me soltasse de mim e me deixasse a mim próprio prá trás, como se avançasse para fora do meu corpo e, através da velocidade, me purificasse... quilômetros e minutos... as pernas a tentarem destruir o mundo de uma maneira que os meus braços não eram capazes... " 

[José Luís Peixoto]

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Dream


Sonhos ventam vales de cinzas onde o pó levanta todos os juízos 
em nuvens de decências desiguais...
Sonhos lançam os seus rugidos à via férrea e descarrila toda a ternura 
na ponta de versos roucos...
Sonhos trocam apertos de mãos e, como ameixeiras floridas, nos alimentam de pormenores breves e fugidios, que nos soletram trilhos e nos convertem em caminhos 
pelos quais, um dia, fugimos...
Sonhos são murmúrios esguios, saídos de uma escrivaninha castrada, que nos esconde afeições bizarras, 
dentro de suas secretas gavetas!

domingo, 7 de dezembro de 2008

Fair play

Imaginei que nascessem sonhos das coisas mais simples e que essas coisas simples fossem um instante delicado entre o afeto e a palavra. Imaginei que os gestos amparassem a aflição lentamente, como um filho ao cólo, e crescessem flores no vazio das tristezas passadas. Quando ainda não me existia este peso infinito, repetidamente sólido, por dentro, eu era todas as minhas alegrias refletidas. Eu era a minha alegria somada a alegria de todos, porque sorrir era uma dessas coisas simples. Hoje o meu sorriso já não é mais o mesmo. Tem um silêncio partido ao meio. Onde as coisas se partem com a simples partida das coisas imensas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Nec semper lilia florent lat


[Nem sempre florescem os lírios!]


Como não posso te tocar, te respiro. Entrecortada por tempestades, te propago num aroma típico que te permite continuar a existir. A saudade que flui não necessita de formas definidas perdidas num gesto, e o seu caminho não cabe nos trilhos de um decreto barrôco, sombreado por hábitos que, inesperadamente, atravesso. Sempre à espera de uma palavra tua.
Há muitas fadas e esquilos em teus telhados, enquanto o dia é um veleiro interminável nas palmas de tuas mãos. Quando mergulho em teu silêncio, não choro nunca, porque em teu silêncio não há dor, essa poeira triste que, uma vez desperta, penetra nos olhos e não nos deixa dormir. Mas entre os véus dos meus dedos, sei que flutuas e dormes. Como se sentisse frio e se encolhesse. Como se afastasse demônios e se encontrasse.
Sopro liberdade em teus ouvidos e a solidão da noite se espalha para longe, onde não estamos subordinados ao sol. Os teus jardins bebem de meus orvalhos com a mesma liberdade de escolha. As aventuras do espírito não asfixiam a vegetação dos teus olhos, maduros e justos, porque eles se impregnam de um frescor que derrama paisagens sobre mim. E quanto mais me olhas, mais mares e colinas sou, pontilhada de poemas.
E só me afasto de ti quando é chegada a minha hora. E os meus olhos, dissolvidos dos teus, reinventam Macbeth, tristemente, dando palavras mornas à dor.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Vive la France!

"A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar." [Rubem Alves]

Vai, minha tristeza, e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe, numa prece, que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
Mas, se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim! ;)
[Chega de saudade-Vinícius de Moraes]

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Palavras densas


[Bois uivantes -Arte de Fernando Bonafé] 

Vejo presente um tempo passado sob os teus ossos encolhidos. Passado que não passa e não te deixa ir além das coisas tristes. Porque as coisas tristes nos enganam. As coisas tristes nos confundem. As coisas tristes nos anulam e duram quase que infinitamente.
Não sei do que te escondes, quando o dia nasce e és tu quem morre. Morre uma morte de mágoa. Uma morte íntima. Uma morte roída. Não morrem os dias, não morrem as virtudes, não morrem as infâncias. Morre apenas tu. Como um semivivo, como um soterrado, cuja alegria é de uma inocência já morta.
Por instantes, e apenas por instantes, as sobras de tua existência seguem adiante de teu pesado fardo. E quando te livras do medo, quando te esqueces do medo, quando avanças sobre ele, carregas toda a luminosidade do mundo. Dentro e fora!