Não tem sido fácil articular estas frases. A mim mesmo lembro que não tenho o hábito de escrever, que não domino certas habilidades de escrita [...] mas verifico que por este caminho vou chegando a certas conclusões que até agora me estavam inacessíveis, e uma delas, por mais simples que pareça, agora se me apresenta neste ponto da minha escrita, e vem a ser o contentamento de saber que posso falar de pintura, certo de que a faço má e não me importar com isso, de que falo das obras de arte, ciente de que os meus trabalhos em nada irão perturbar as discussões e as análises dos entendidos. É como se dissesse comigo mesmo: ‘Não me atingem’. O homem sem talento é tão invulnerável como o génio, talvez mais do que ele, mas não foi provado que a sua vida seja menos útil. Curiosa conclusão esta.
A manipulação exercida em favor dos “fartos e dotados” (em geral convenientemente mortos) domina vários meios, inclusive o artístico. A possibilidade de decidir aquilo que deve ser preservado e considerado arte cria novas esferas de manipulação. Nesse sentido, os museus também são um lugar onde o poder de dominação se exerce, e determina quem é o gênio e quem é o medíocre, o que merece ser preservado, o que não. Se não é só minha, se não é apenas uma fácil autojustificação, se é e era já antes um dado geral, que os fartos e dotados têm vindo a escamotear para preservar os seus vários modos de domínio – tudo nos museus merece ser salvo, as tintas sobre a tela e a tela sob as tintas, o telhado que tudo cobre e o guia que repete o que lhe ensinaram, o sobrado que piso e a sola que o pisa, o letreiro que certifica o quadro e a mão ausente que o escreveu.
Bonjour!
Manual de pintura e caligrafia - José Saramago
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