terça-feira, 31 de março de 2009

Lilac Wine

[Imagem by Giacomelli]
"Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em qualquer das virtudes - deve ser considerado como meros "acidentes externos", impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas... Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impávidos - não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para elas somos..." [Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego']
[Marilyn Monroe]
"Há, é verdade, em torno de mim, uns quatro ou cinco milhões de seres humanos. Mas, que é isso? As pessoas que não nos interessam e que não se interessam por nós, são apenas uma outra forma da paisagem, um mero arvoredo um pouco mais agitado... 
São, verdadeiramente como as ondas do mar, que crescem e morrem, sem que se tornem diferenciáveis uma das outras, sem que nenhuma atraia mais particularmente a nossa simpatia enquanto rola, sem que nenhuma, ao desaparecer, nos deixe a mais especial recordação..." [Eça de Queirós, in 'Correspondência']
"Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros!"
[George Orwell]
Bonjour!

segunda-feira, 30 de março de 2009

Way to go

"A sua pele era o sítio onde os meus dedos gostavam de passear lentamente e os seus ombros eram onde os meus lábios morreriam..." 
"... Era onde queria encostar o meu rosto e ficar 
até o silêncio e a paz me levarem... 
Algo atravessa-me!"
Bonjour!
[Imagem de AnnTheophane Graham,1926 e trecho de J.L.Peixoto]

sábado, 28 de março de 2009

Mercí bien!

Muito obrigada pelos "4.000 Mergulhos"
Bem-vindos sempre à esta ilha!
Aloha...

Ossóptico

"A fita desfiada e amarela que trazes ao pescoço equilibrada nos teus dedos de marfim; a gruta onde nos fixámos sobre o brilhante rubro; o jogo de sínteses ainda em esboço primário na curva imensa; o rosto sem olhos atravessado por uma seta do guerreiro do lago, do corsário oceânico, do legendário argonauta.. Persisto, idêntico e semelhante a uma multidão de garotos sem memória, na estrada de parafusos que contornas medindo a compasso a distância quilométrica que percorres, imagina!Imagino-te a dez quilómetros certos sem um gesto..
Persisto na noite que nasceu para além dos olhos, no vento que fundiu a planície, igualmente em todo o mundo vísivel, em tudo que me toca e resplandece alargando-se até ao infinito onde estão os teus olhos de Mulher-Mãe, Magnífica na tua veste de cabelos.. Procura-me quando encontrares na viagem que vais fazer, o teu número fatídico no triângulo negro, onde está representada a Mulher de cinco cabeças e, sobre a pedra, a palavra mágica do nosso encontro..
Virás ao saberes da existência do Surreal quando os homens furiosamente afirmam a sua vida, quando das paredes derruídas vêm palavras estranhas e prevêm o futuro e hieroglifos indecifráveis inscritos nas pedras dos túmulos te indicam.. Virás ao saberes que te ocultaram a existência do teu ser autónomo e real, ao acordares um dia com o céu, o vento, na erecção das árvores, quando o teu nome nasceu virgem nas estrelas ao nasceres tu..
Procura-me quando a morte for impossível e já não seja possível viver – quando já nada nada for possível - e então opor-me-ei ao mundo a que nos opomos, apontarei a mulher-morta onde o opaco é transparente e cairá a estrela cadente, rápida e precisa, que os mortos dizem e dizem que estou louco no movimento perpendicular.. Procura-me quando já não for possível nem morto, lento, alto, ruidoso de claridade, com objectos exóticos intensamente iluminados, quando já nada for possível e apareceres sem nexo, estranha a ti mesma, diferente, como um bloco de prédios demolidos ou ave negra.. FALSA a nossa vida sabotada no pasmo em que vivemos, na negação do que nos é mais grato – o AMOR - prevista a LIBERDADE! A afirmação exaltada que nos queima os dedos entrelaçados. Mulher-Mãe tumulada! Sem sabermos um do outro ambos nos procurámos no labirinto, Nós Amor! Que existes porque existo e existimos assim para além das montanhas de mar que nos cercam, para além da noite, para além de ti, de mim, do corpo que formamos síntese de toda a poesia feita.. Dedico-te este poema para existires integral, completo e real, como o objecto que não se nega, como o invisível, como o universo onde vivemos separados-unidos para sempre –REAL e LIVRE..."
[António Maria Lisboa,in Ossóptico1, 1952]

Boulevard 2

"Os dias nascem durante todo o mês... por quase 30 vezes! E quando acordávamos de nosso sono fechado, sabíamos que o dia existia depois da penumbra, e que os relógios, alheios ao mundo, continuavam a nos dar as horas, e as alegrias, mesmo sendo sempre noite. A luz da eletricidade não tem forças suficientes para iluminar o nosso imenso "mês das noites". 
Escrevemos pouco. Pensamos muito. Lemos, falamos, amamos e nos tornamos muito. Por muito longe que estivéssemos, sempre fomos próximos daquela escuridão sem distância. A distância é o silêncio sublime de nossos medos. É querer fugir para onde tudo não exista.  É ver o silêncio das nossas vozes a assustar-nos. É o silêncio a ver a casa na colina a existir mais do que todas as pessoas vivas. É ver a casa que guarda no seu peso austero, todo o tempo dos mortos e das gerações. É ver a casa existir mais do que as porcelanas a estalarem nas prateleiras. É ver os tapetes e os objetos partirem-se lentamente... 
E o mundo ficou tão longe de toda essa beleza triste... 
Nos quadrados de vidro das tuas janelas, onde havia o desenho baço das montanhas, a neblina encobria todos os corpos gigantes. Sentados à mesa, no silêncio cúmplice de nossa tranquilidade, serví-me de ti e da vida, cercada de lombo e arroz!" Saudades!

sexta-feira, 27 de março de 2009

Apenas tu

"O meu coração é o livro que te quero ler quando formos velhos... Agora sou uma sombra, sinto-me inquieto como um império. Tu és a mulher que me libertou... Vi-te a olhar para a lua e não hesitaste em amar-me com ela... Vi-te glorificando as anémonas colhidas nas rochas e amaste-me com elas... Recebeste-me na tua intimidade, na areia lisa, entre os seixos e a margem, melhor do que se eu fora um convidado...
Desejava-te pela tua beleza, deste-me mais ainda do que aquilo que possuías, compartilhaste a tua formosura — compreendi-o esta noite, enquanto recordo os espelhos de que fugias... Tudo isto sucedeu na verdade do tempo e na verdade da carne! Estavas com um menino e fizeste-me participar do seu perfume e das suas visões, sem me pedires sangue, sobre as mesas de madeira adornadas com comida e velas, e os mil sacramentos que trazias na tua cesta...
Agora sou uma sombra, e suspiro pelas fronteiras das minhas deambulações... e avanço com a energia da tua oração, avanço porque estás ajoelhada com um ramalhete de flores numa caverna de ossos dentro da minha cabeça, e avanço para um amor que tu, só tu, sonhaste para mim..."
[Leonard Cohen, in "Isto é para ti"...]
Bonjour as always!

quinta-feira, 26 de março de 2009

Fio das horas

"Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas. E tudo girava ao meu redor... as coisas, os países, os anos... então, me chegava um socorro vindo do alto para me livrar do nada de onde não poderia sair sózinho, e num segundo, eu passava por séculos de civilização que recompunham, aos poucos, os traços originais do meu próprio eu. E quando eu despertasse no meio da noite, como se ignorasse onde me encontrava, nem mesmo saberia, num primeiro instante, quem era. Às vezes, uma mulher nascia durante os meus sonhos, pois um homem que dorme sustenta em círculo, ao seu redor, o fio das horas, dos anos, dos mundos..." [Marcel Proust, in "No caminho de Swann"] Enquanto eu escrevo palavras que nunca serão cantadas, espero pela dor passar... E o vento soa como se o mundo suspirasse, onde a Lua é apenas uma unha torta, enquanto a TV murmura ao lado da parede... Bonjour!

quarta-feira, 25 de março de 2009

Back To The 50's

"O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a prolongar. Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida "os últimos retoques" nunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma...  Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber QUANTO e COMO ainda nos resta para viver. Qual o modo de escapar a uma tal ansiedade? Há um apenas: que a nossa vida não se projecte para o futuro, mas se concentre em si mesma...  Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é VAZIO. Quando eu tiver pago tudo quanto devo "a mim mesmo", quando o meu espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é INDIFERENTE viver um dia ou viver um século, então poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do TEMPO!  Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana, se nós estivermos firmes perante a instabilidade? Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida completa...  Quem formou assim o seu carácter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que não faz MAIS do que desgraçar tudo!" [Séneca, in 'Cartas a Lucílio' ]
A variety of 50s doo-wop and rock and pop rock,
And the young ones are busy destroying their names...
Bonjour!

segunda-feira, 23 de março de 2009

A mulher, a casa e o gato

"Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça da casa, uma luz violenta. Anda um peixe comprido pela cabeça do gato. A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia pensa-a, enquanto o gato imagina a elevada casa. Eternamente a mulher da mão passa a mão pelo gato abstracto, e a casa e o homem, que eu vou ser, são minuto a minuto mais concretos. A pedra cai na cabeça do gato e o peixe gira e pára no sorriso da mulher da luz. Dentro da casa, o movimento obscuro destas coisas que não encontram palavras. Eu próprio caio na mulher, o gato adormece na palavra, e a mulher toma a palavra do gato no regaço. Eu olho, e a mulher é a palavra. Palavra abstracta que arrefeceu no gato e agora aquece na carne concreta da mulher. A luz ilumina a pedra que está na cabeça da casa, e o peixe corre cheio de originalidade por dentro da palavra. Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante. Se toco (e é apaixonante) a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra. Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra. Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher com seu gato, pedra, peixe, luz e casa. A mulher da palavra. A Palavra. Deito-me e amo a mulher. E amo o amor na mulher. E na palavra, o amor. Amo com o amor do amor, não só a palavra, mas.. cada coisa que invade cada coisa.. que invade a palavra. E penso que sou total no minuto em que a mulher eternamente passa a mão da mulher no gato dentro da casa. No mundo tão concreto." "A água olha o dia sobre os cotovelos. batem folhas da luz um pouco abaixo do silêncio. Quero saber o nome de quem morre: o vestido de ar ardendo, os pés e movimento no meio do meu coração. O nome: madeira que arqueja, seca desde o fundo do seu tempo vegetal coarctado. E, ao abrir-se a toalha viva, o nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus pulmões de algodão queimando. Uma serpente de ouro abraça os quadris negros e molhados. E a água que se debruça olha a loucura com seu nome: indecifrável cego." [Herberto Helder:Introdutor do Movimento Surrealista de Portugal nos anos 50]
Toots Thielermans for all... Bonjour!

domingo, 22 de março de 2009

Há uma lâmpada balançando

"Eu vivo pra poesia mas os poetas não vivem pra mim. Espero que eles me alimentem ..como.. a um coelho faminto. Eles não sabem disso. É melhor mesmo que não percebam o quanto são necessários. De outro modo seríamos ultrapassados por eles e eles não saberiam quando parar. Um excesso de poetas não seria uma boa idéia pro nosso mundo. Nosso mundo necessita apenas de um certo número. Embora isso ainda não tenha sido atingido, é importante que a poesia seja controlada... Eu sei. Tenho observado poetas vagabundeando por aí, esperando o momento de atacar. É pior do que haker atacando. Uma visão horrível. A pessoa atacada correrá pela rua gritando. Pode até amaldiçoar o sistema, e fugir de casa levando sua filha com ele. Poemas têm um jeito de infeccionar os pobres idiotas que os escrevem. Poetas ficam em silêncio durante conversações, esperando uma brecha. Subitamente, sem aviso, um poeta falará uma sentença que acabou de pensar, e aqueles em volta gritarão ..como.. que atingidos por um curto-circuito ....
Você gostaria que isso acontecesse freqüentemente? Levaria meses pra se voltar a qualquer aparência de normalidade. Isso pode ser uma boa de vez em quando, ..como.. mudança. Mas pára um momento e procura imaginar o pessoal do governo de Sua Majestade todos os dias fazer suas transmissões ..como.. faz, mas cada uma ser um poderoso poeta...
A confusão seria indescritível. A nação ia parar nos trilhos e colher ..flores.. pros vizinhos. Carros iriam se abalroar no tráfego pros motoristas saltarem e apertarem as mãos. Greves seriam desnecessárias pois ninguém trabalharia. A vida seria boa demais pra se perder. Cada dia seria vivido sem ..plano.. e cada momento saboreado ..como.. vinho novo. Cada pôr-do-sol seria uma revelação e uma promessa pra amanhã .... Todo mundo faria amor. Mesmo os doentes. Melhor seria os poetas não usarem palavras. Melhor que nascessem mudos. Melhor que cortasssem as línguas, se falassem. E melhor ainda, se pensassem, ficassem em silêncio. Deus nos proteja de suas invocações ferozes, pelo menos até termos tempo de praticar exercícios de poetas mortos, pra estarmos em forma a fim de tentar hoje outra vez. Poetas não percebem... enquanto vivem são E R A S daninhas... quando morrem são F E R T I L I Z A N T E S!" [Millor Fernandes, in "Poetas são gente", imagens de Joan Kocak!] There's a light bulb dangling...

Have you ever felt lonely?

"Os amigos amei, despido de ternura fatigada... uns iam, outros vinham, e a nenhum perguntava,
porque partia, porque ficava...
era pouco o que tinha, pouco o que dava...
mas também só queria 
alguma sede de alegria, 
por mais amarga!"
[Eugênio de Andrade,imagem de Dave Nitsche!]
And I hope you find what you're missing... 
Bonjour!

sexta-feira, 20 de março de 2009

Fierro y carbón

"O artista é como um receptáculo de sentimentos que vêm de toda a parte: do céu, da terra, de um pedaço de papel, de uma figura que passa, ou de uma teia de aranha..." [Pablo Picasso by Robert Doisneau] "A obra de um artista é uma espécie de diário. Quando o pintor, por ocasião de uma mostra, vê algumas de suas telas antigas novamente, é como se ele estivesse reencontrando filhos pródigos..." [Pablo Picasso by David Duncan]

quinta-feira, 19 de março de 2009

A multidão embrutece

"Quando muitos homens se encontram juntos... perdem-se. A multidão transporta e precipita-os de cima para baixo: trata-se de um recuo e uma decadência. Todo o homem, lá dentro, converte-se noutro - mas noutro pior. São florestas em que os ramos altos não se entrelaçam, mas apenas, embaixo, na escuridão, nas raízes terrosas... Toda a pessoa que se opõe às outras, existe enquanto é diferente, não se pode liquefazer num todo. Mas há em cada um de nós, mesmo no maior de nós, um "eu inferior", antiquíssimo, bestial, infantil, esquecido, renegado, oculto, refreado - amortecido, mas não morto. Quando os homens se reúnem, o eu superior "anula-se" e os inferiores, "despertados", reconhecem-se e assumem a supremacia. A multidão é niveladora e gosta de decapitar, ainda que metaforicamente. Já não são intelectos ou sentimentos que contrastam, mas instintos elementares que combatem. Quanto mais o homem se eleva, mais a turba se divide. Quando volta a emergir na turba, tem forçosamente de regressar à homogeneidade originária. Nenhum gênio se assemelha a outro, mas todos os medíocres são cópias. A altura separa, o que a baixeza reúne." [Giovanni Papini, in 'Relatório Sobre os Homens']
"Todos os desejos são contraditórios...como o do alimento. Gostaria que aquele que amo me amasse. Mas se ele me for totalmente dedicado, deixa de existir, e eu deixo de o amar. E enquanto não me for totalmente dedicado, não me amará o suficiente. Fome e saciedade. O desejo é mau e ilusório, mas, no entanto, sem o desejo não esquadrinha-se o verdadeiro absoluto, o verdadeiro ilimitado. É preciso ter passado por isto. Infelizes os seres a quem o cansaço "subtrai" esta energia suplementar que é a fonte do desejo. Infeliz, também, aquele a quem o desejo "cega". É preciso arrastar o desejo até ao eixo dos pólos..." [Simone Weil, in "A Gravidade e a Graça"]
Hope you like it!

terça-feira, 17 de março de 2009

Não cabe em polaroid

"A menina tinha um amigo. E ele deixou para sempre seus olhos com ela..."


Besouros no vestido

"Instalou-se um tempo de inquietude e desassossego e vieram besouros a passear por meu vestido. 
Tudo é móvel sobre a estampa azul infestada de ansiedade, tudo é de uma latência gotejante e provocativa e sei que, em algum lugar, o que há de ser já é, mas ainda não veio ao meu encontro. 
Sou uma menina em frente ao colégio, esquecida no frio depois do horário, mas tenho a improvável certeza que o caminhão do circo está prestes a chegar para me apanhar. 
Sempre tive essa mania de cultivar estrelas do lado de dentro dos olhos, mesmo que elas sejam mais de céu que de lágrima, mesmo que ninguém mais as veja além de mim. 
Aprendi a sentir o cheiro bom da brotação que ainda não ascendeu da terra e poderá ser sepultada pelo estio que não termina, porque a felicidade também está no prefácio das coisas..."
Bonjooour!
[Imagem: Cissi's/ Prefácio de Tícia]

segunda-feira, 16 de março de 2009

O simples vive como respira

"À humildade às vezes falta simplicidade, por causa dessa duplicação de si para si que ela supõe. Julgar-se é levar-se a sério demais. O simples não se questiona tanto assim sobre si mesmo. Porque se aceita como é? Já seria dizer demais. Ele não se aceita nem se recusa. Não se interroga, não se contempla, não se considera. Não se louva nem se despreza. Ele é o que é, simplesmente, sem desvios, sem afetação, ou antes — pois ser lhe parece uma palavra grandiosa demais para tão pequena existência –, faz o que faz, como todos nós, mas não vê nisso matéria para discursos, para comentários, nem mesmo para reflexão. Ele é como os passarinhos de nossa floresta, leve e silencioso sempre, mesmo quando canta, mesmo quando pousa. O real basta ao real, e essa simplicidade é o próprio real. Assim é o simples: um indivíduo real, reduzido à sua expressão mais simples. O canto? O canto, às vezes; o silêncio, mais frequentemente; a vida, sempre. O simples vive como respira, sem maiores esforços nem glória, sem maiores efeitos nem vergonha. A simplicidade não é uma virtude que se some à existência. É a própria existência, enquanto nada a ela se soma. Por isso é a mais leve das virtudes, a mais transparente e a mais rara. É o contrário da literatura: é a vida sem frases e sem mentiras, sem exagero, sem grandiloquência. É a vida insignificante, a verdadeira vida. A simplicidade é o contrário da duplicidade, da complexidade, da pretensão. Por isso é tão difícil. Não é sempre dupla a consciência, que só é consciência de alguma coisa? Não é sempre complexo o real, que só é real pelo entrelaçamento em si das causas e das funções? Não é sempre pretensioso todo homem, assim que se esforça para pensar? Que outra simplicidade além da tolice? da inconsciência? do nada? O homem simples pode não fazer essas indagações. O que não as anula, nem nos basta para resolvê-las. Simplicidade não é simploriedade..." [André Comte-Sponville, in "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes"]
Bonjour!

sexta-feira, 13 de março de 2009

Demasiado humano

"Pinta-se o Amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso de razão. Usar de razão, e amar, são duas coisas que não se juntam. A alma de um menino, que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração, que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos Pintores do Amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem, que isto que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância: e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama, porque conhece, é amante; quem ama, porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem, ignorando, ofendeu, em rigor não é delinquente; quem, ignorando, amou, em rigor não é amante..." [Padre António Vieira, in "Sermões¹"]
As Quatro Ignorâncias do Amante...
"Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor. Ou porque não se conhecesse a si: ou porque não conhecesse a quem amava: ou porque não conhecesse o amor: ou porque não conhecesse o fim onde havia de parar, amando. Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera. Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara. Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera. Se não conhecesse o fim em que havia de parar, amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar, se os previra..." [Padre António Vieira, in "Sermões²"]

quarta-feira, 11 de março de 2009

A arte de Jill Greenberg

"Os homens não podendo contar uns com os outros na realidade, parecem ter combinado entre si contentarem-se com "as aparências". Com cinco ou seis termos de arte, e nada mais, dá-se ares de "conhecedor"... de música, quadros, construções ou manjares: pensa-se ter mais prazer do que os outros em ouvir, ver, comer; impõe-se aos seus semelhantes, e engana-se a si mesmo..."
[Jean de La Bruyére, in "Os Caracteres"]
"Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes recíprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude. Ser idoso não quer dizer que se seja necessáriamente intolerante e retrógado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental..." [Júlio Dantas, in "Páginas de Memórias"] "A fraqueza dos nossos sentidos impede-nos o gozar das coisas na sua simplicidade natural. Os elementos não são em si como nós os vemos: o ar, a água, e a terra a cada instante mudam, o fogo toma a qualidade da matéria que o produz, e tudo enfim se altera, e se empiora para ser proporcionado a nós. Vemos as coisas pelo modo com que as podemos ver, ou seja, "confusamente", e por isso quase sempre as vemos como elas não são.As paixões formam dentro de nós um intrincado labirinto, e neste se perde o verdadeiro ser das coisas, porque cada uma delas "se apropria" à natureza das paixões por onde passa. E a vaidade, que de todas as paixões é a mais forte, a todas arrasta, dá ao nosso conceito a forma que lhe parece..." [Matias Aires¹] "O amor não se pode definir; sendo em nós limitado o modo de explicar, é infinito o modo de sentir; por isso nem tudo o que se sabe sentir, se sabe dizer: o gosto, e a dor, não se podem reduzir a palavras. Tudo o que produzir a respeito do amor, são átomos. Os que amam não têm livre o espírito para dizerem o que sentem; e sempre acham que o que sentem "é mais" do que o que dizem; o mesmo amor entorpece a idéia e lhes serve de embaraço: os que não amam, mal podem discorrer sobre uma impressão, que ignoram; os que amaram são como a cinza fria, donde só se reconhece o efeito da chama, e não a sua natureza; ou também são como o cometa, que depois de girar a esfera, sem deixar vestígio algum, desaparece..." [Matias Aires²] "A nossa tristeza faz-nos parecer tudo o que vemos triste; a nossa alegria tudo nos mostra alegre; e o nosso contentamtento tudo nos mostra com agrado; os objectos influem menos em nós, do que nós influímos em nós mesmos. Vemos como de fora as aparências de que o mundo se compõe, por isso não conhecemos o seu verdadeiro ser, nem gozamos delas no estado em que as achamos, mas sim naquele em que elas nos acham. A delícia dos olhos, e do gosto, dependem mais da nossa disposição que da sua eficácia; o mesmo que ontem nos atraiu, hoje nos aborrece; ontem porque estava sem perturbação o nosso ânimo, hoje porque está com desassossego; e tudo porque não somos hoje, o que ontem fomos: o mesmo que hoje nos agrada,amanhã nos desgosta, e os objectos, por serem os mesmos, não causam sempre em nós as mesmas impressões; por motivos diferentes recebemos alterações iguais. O pouco que basta para afligir-nos, ou para contentar-nos, bem mostra o pouco constantes, que são em nós a aflição, e o contentamento; por isso uma e outra coisa, nos deixa com a mesma facilidade com que nos penetra..." [Matias Aires³] Bonjour! [Essa é uma homenagem ao 1º aninho da Ana Luíza, minha sobrinha...Parabéns, meu amor!] [Jill Greenberg - http://www.manipulator.com]

terça-feira, 10 de março de 2009

Meu destino gira nos meus dedos

"Não sei por que razão o mundo se inquieta tanto quando estamos sózinhos... Talvez não saiba que esgotamos os olhos no rigor dos espelhos e que, por isso, não somos capazes de traçar um caminho senão para o evitarmos... Não sei por que se aflige tanto o mundo se ficamos sózinhos... Talvez ignore que nós não somos mar de nenhuma praia, que escolhemos poupar as falésias das cicatrizes das ondas... e tudo para não aprendermos o verdadeiro nome das feridas!"
[Maria Rosário Pedreira]
Bonjour
"Por que hei de agradar o rude sofrimento e mais rude torná-lo, na desesperança? Por que proclamar a tristeza inútil diante das coisas que secretamente e melhor compreendo? Não falarei do desamparo que finamente aperta os dedos na garganta. Não citarei o sentimento peculiar aos que têm propensão para o desengano e, mais do que nunca, ao crepúsculo, sentem-se traídos e ultrajados sem motivo. Não mais me referirei a estados de alma que nada contêm além de um vazio cinzento e interminável, um abismo de sombra e de abstrato,onde a tristeza rumina o seu cadáver. Todos os gestos seriam inúteis. Nada salva e tudo nos perde e atraiçoa. O temor sustenta minhas interrogações e de repente me sinto só, perdidamente só e anterior a todos, como se ninguém mais houvesse. Tudo desaparece na refração das águas da memória. Vejo as imagens deformadas, mas que persistem, fantasmas íntimos. Rio e já não entendo; choro e me dilacero lentamente no tempo em que tudo está pesadamente mergulhado. Não grito porque o hábito se forma e o pudor defende. Conheço e entendo. Algumas vezes adivinho, mas não devasso. O que sabe deve calar-se para não ferir. Se digo, as palavras nada significam senão o prazer de "proferi-las" e achá-las bem achadas, não para que exprimam, mas simples jogo colorido que diverte. Não proporei normas, nem direi o que abomino. Deu-nos Deus a palavra para melhor silenciar. No inarticulado, me descubro um homem, com um nome, certos hábitos, fisionomia, alguns cacoetes e muitas possibilidades. Mas sobretudo vivendo por conta própria. Foi um ato irresponsável confiar-me a mim mesmo. Meu destino gira nos meus dedos. Não me pertenço e nem me encontro. O tormento da lembrança, como cãibra, paralisa os gestos e sobrepõe ao que é aquilo que já foi. Calculadamente percorro o caminho da fatalidade, onde os abismos espreitam e aguardam a imagem quebrada, e cem vezes traída..." [Otto Lara Resende, in "Balanço"]

segunda-feira, 9 de março de 2009

Labuta

"A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.  Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras... A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ... 
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. 
Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? 
Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? 
A enxada será irmã da pena? A fome de pão paracer-se-à com a fome de luz?... 
Bonjour! [Imagens "As Tribos do Rio Omo" / Texto de T. de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"] 

sexta-feira, 6 de março de 2009

My iídiche

"O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Guerardo, não te enganes sobre as minha lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela. Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo, assim tu também não és mais para mim do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver. Guerardo, tu és agora mais belo que tu mesmo. Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos..." [Marguerite Yourcenar, in "Sistina"] "Os mais opacos dos homens também têm os seus clarões: este assassino toca correctamente flauta; este contramestre que dilacera o dorso dos escravos com chicotadas é talvez um bom filho; este idiota partilharia comigo o seu último bocado de pão. Há poucos a quem não possa ensinar-se convenientemente alguma coisa. O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmo-nos de cultivar as que ele possui..." [Marguerite Yourcenar, in "Memórias de Adriano¹"] "Nós é que não estamos prontos. Os objetos da nossa felicidade existem há dias, anos, talvez séculos; esperam que a luz se faça em nossos olhos para os vermos, e que o vigor chegue aos nossos braços para os agarrarmos. Eles esperam e espantam-se de há tanto tempo ali estarem inúteis. Sofremos, sofremos de cada vez que duvidamos de alguém ou de qualquer coisa, mas o nosso sofrimento transforma-se em alegria logo que apreendemos, nessa pessoa ou nessa coisa, a beleza imortal que nos fazia amá-la." [Marguerite Yourcenar, citado "in Memoriam"]