terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Rente ao chão


O pátio é agora um quadrado de luz. Sem gatos nem sombras; apenas o silêncio das paredes, intacto. Rente ao chão, um exercício de entropia: tabuletas gastas, loiça em cacos, o balde cheio de pregos tortos, aguarelas refeitas pela chuva, baús que guardam segredos, estantes rendidas à poeira, um par de asas falsas, a túnica com rasgões e duas malas de couro manchadas pelo tempo, vazias.
Ao canto, o relógio partido e os ponteiros soltos. Um deles aponta para as nuvens, lá muito ao alto. O outro aponta para nós, para aqui, para estes inumeráveis labirintos.

[José Mário Silva, in Nuvens e Labirintos, 2001]


Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco mais.
Palavras que te quero confiar, para que não se extinga o seu
lume, o seu lume breve.
Palavras que muito amei, que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

[ O sal da língua/ Eugénio de Andrade]

Ao meu pai e minha mãe!

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