domingo, 30 de novembro de 2008

Palavras líquidas


Felicitei-me por ter nascido livre e meu primeiro choro, selvagem e abstrato, me concedido, no grito, o repouso. Mas o senso lamentou-me o cálculo, tornando-me adulta para sempre.
Eu, que era tão jovem, e ainda não conhecia o rosto sonolento da fatalidade, me cortava em teias de esquecimentos, ofegando intervalada, berço e veredito.
Enrugavam-se meu dias tolhidos, macerados de prazeres, com olheiras cochichadas de vícios e as horas sovadas de insônia, enferrujando minha consciência e impondo-me a velhice.
Mas eu não a queria assim, sem rugas bordadas de sublimidades, sem olhos confessos de filhos a me iluminar delícias nas órbitas.
Sem riso, sem gozo, como uma gruta fria de cabelos pontiagudos, incinerada de consternação. Mas já era tarde.
Desabitada de infância e ecos, me supondo repetidamente em gritos, eu já não passava de um passarinho castigado, piando baixinho, doído de chuva.

sábado, 29 de novembro de 2008

Palavras mornas²

"Deito-me e há um violoncelo dentro da minha cabeça. Mais ninguém ouve. Só eu sei quem me está a tocar."
[Diário de Bernfried Järvi]

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Palavras mornas¹


Em teus troncos, sou a ave que busca a fruta ante o vento da cólera que nos derruba folhas sêcas. Elevo-te e multiplicas. Entrelaças-me e dás sombras!

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Nãos e dentes

Atira-nos a mordida e se afasta, em nãos e dentes, intácta, pouco se importando com a miséria da nossa incompreensão.
A chamamos de vida e tudo que nos representa é ferida e inferno, equívoco e pântano.
Nãos e dentes, e sangramos cotidianamente um desassosego acrobático, um fracasso de morte, descartados de possibilidades e escoltas.
E se é um coração que só subtrai, indecifravelmente vivo nesta operação rítmica de perdas.
A vida espia-nos com a cabeça ereta e o bote engatilhado, suposto de que escaparemos.
E não há concessões, não há chances para mim, para você, para os porcos, os peçonhentos, enquanto, o resto, segue feliz em suas comédias somadas de embuste e hipocrisia.
Nós, nãos e dentes, entulhados de desilusão absoluta, cumprimos sentenças irremediáveis de clausura e nulidade, subtração e gemido!

domingo, 23 de novembro de 2008

Sementes


Pessoas martelam-se como um pêndulo a se repetir, a se balançar, a se ferir num peito de ferro. Com seus rostos mudos e invioláveis, não esperam nada da vida, não esperam nada de sí. Esperam, talvez, a chuva derramar um sentido sobre os telhados dos homens imundos. E ainda que a chuva não caia, e a maldade dos homens se arraste pelas frestas, com a cara amarrada, cansada de sí, permanecem a esperar. Duras e imóveis. Como as sementes, que esperam a água escorrer para o lado de dentro das coisas secas, a vida esquecida do lado de fora!

sábado, 22 de novembro de 2008

Silêncio


"Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso... quando paro de pensar... há vento que tráz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos... quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta... é também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade!"

[Da obra:Cemitério de pianos- de José Luís Peixoto]

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Feixes de hortelã


Tenho teu sorriso estendido em lençóis para que floresça e ria minha cama, 
assim como os meus olhos molhados de mármore para lamber tua pele ao acordar.
Tenho teu gosto amarrado como feixes de hortelã em meus cabelos compridos de tua falta.
Tenho tuas carícias infladas nas mãos para que me vaporizem jatos de calêndulas 
e eu o colha completo nos cêstos de todas
as manhãs.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Flores viúvas


O comboio segue rota e direção na fila dos desconvidados. 
Pedaços partidos de paisagem pregam gente demolida como estacas ao chão. 
Crianças sem ninhos buscam árvores caídas das asas de morcegos onde, atiradores e vítmas, sucumbem imundos do mesmo pó. 
Botas rastejam dementes seus soldados, pisoteando flores viúvas no fosso de gente. 
Todos beijados pela mesma boca bastarda de fuzís!

domingo, 16 de novembro de 2008

A Criança em ruínas


"um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for tão distante, quando o frio responder com a vóz arrastada de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da nossa janela..."
[Da obra de José Luís Peixoto- Portugal]

Nenhum olhar...


O teu olhar ficará no meu olhar quando morrer e, morto, contemplar as planícies que serão o teu olhar a anoitecer lento. O teu olhar ficará nas minhas mãos esquecidas e ninguém se lembrará de o procurar aí. Penso: nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas estão, porque nunca ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens, ou um olhar. E tu. Continuarás perdendo o silêncio por mãos esquecidas, irá a enterrar o teu silêncio dentro dentro do meu peito mulher tantas vezes. Mulher repetida na respiração de um lugar passado ou morto. Tempo e vida. Mulher, não sei o que fomos. Sei que, hoje, te possuo. Hoje conheço-te. É meu o teu olhar e o teu silêncio. E de nada me serve já, porque avanço para onde os homens deixam de ser homens. Faço o caminho solitário por entre as ruínas da vida. O caminho onde tudo é muito pouco, e cada uma dessas coisas pequenas é demasiada!

[Da obra de José Luís Peixoto - Portugal]

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O banquete!

[Imagem DentroDarte]

Ninguém ouvirá.
Não cairão chuvas, não correrão viélas, não riremos imoderados. Toalhas obesas adormecerão esparramadas sobre tapetes cordiais que, em delícias masoquistas, afagarão os pés que os esmagam. Ninguém saberá. Não lamberão sapatos, não respirarão destróços, não choraremos flor de laranjeiras. Os episódios se afogarão em caldo de pimenta na fogueira lírica dos conflitos e cozinharão a ardência universal da vida. Ninguém dirá. Não abaterão novelos, não explodirão canetas, não seremos os únicos coitados. Os escárnios abrirão comportas de larvas sobre a salada de raças e nos devorarão num banquete duvidoso. Ninguém rirá!

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Conceitos, cerejas e chamas

Anéis bóiam seus dedos em pormenores tão profundos, que a ociosidade das mãos não é senão um subterfúgio 
do braço turbulento que descansa do combate.
Como um rito, nos arrastamos sobre as mênades, aquilatados de desejos,
onde qualquer palavra perde o sentido diante da fogueira
tragada de punhais.
A boca desconhece os próprios dentes e limita-se a rir dos insultos que profere,
se distraindo cínica de seus próprios deuses.
Encouraçados de aversões recíprocas, esburacamos a alma de infâmias e mandíbulas.
Depositamos todos os escândalos na bandeja atormentada da lógica que, insultada da volúpia desmedida, 
aprisiona o corpo na fronte, mastigando infeliz, 
conceitos, cerejas e chamas!

domingo, 9 de novembro de 2008

Mundo-livro


"Quando estou sozinho na minha biblioteca, no mais profundo isolamento
Sou capaz de ficar nove, dez, doze horas sem falar com ninguém. Chego até a desligar o telefone durante essas horas.
Meu horizonte visual fica então contido entre volumes grandes e pequenos
Marrons, negro, azuis, com ou sem encadernação de couro ou dourado na lombada. É esse o meu mundo, assim, limitado, mas sem restrições:
Minha biblioteca está além das barreiras da construção e do cálculo.
Nela, meu espírito não é mais estado, mas atividade.
Quem chegar aqui sem ser anunciado
Não vai ver a imagem de uma figura de cabelos brancos, nem o espaço entre as estantes,
Mas uma relação abstrata, totalmente inaplicável aos fatos sensíveis.
Depois, saio para a rua, doze horas mais tarde.
Encontro o meu vizinho falando de taxas de câmbio. E o dono da banca de jornal, com sono, ao lado das manchetes que falam das eleições de 15 de novembro.
Vou até a padaria, pego um litro de leite, dois pães e meio quilo de café.
Pago no caixa e volto para casa, tomando cuidado para atravessar a rua, por causa do trânsito.
Enquanto o elevador me leva de volta para a minha biblioteca
Fico achando que esta realidade envolvente é uma mera hipótese
Onde tudo é menos, embora num horizonte sem limites.
Quando entro de novo, no meu diminuto espaço, entre os tomos e as estantes
Sinto uma espécie de volta heróica a um território infinito.
Às vezes Madame Bovary aparece, ou Fausto, ou Siegfried.
A gente conversa o resto da noite, generosamente.
Enquanto isso, lá na rua, a vida se coagula mais um pouco
Em sua anônima trama caótica.
Quando o dia amanhece de novo, meu pequeno mundo-página
Parece um majestoso edifício de papel, no seu incorrigível otimismo.
Otimismo trágico, é verdade, com poucos indivíduos
Mas repleto de relâmpagos."

[ Da obra: Território do escritor, de Victor Leonardi ]

sábado, 8 de novembro de 2008

Fosso

A pirâmide de Keops virou cartão postal. O Oriente seguiu por um lado, e o Ocidente por outro. Estão de mal há 2.000 anos e não está fácil fazerem as pazes. A Europa brigou com sua irmã Ásia. Radamanto já está cansado de tanto julgar almas esquizofrênicas.

A sabedoria antiga se dispersou, e o inconsciente foi para o subterrâneo. Sacrovir foi vencido por Tibério e por Sílio. Nossa mente ficou esfrangalhada, e até hoje estamos remontando o quebra-cabeças!

[Da obra: Jazz em Jerusalém, de Victor Leonardi]

O bom viajante

O historiador que não quiser persistir no caminho da esquizofrenia (metodológica) deve reler Heródoto com mais atenção. Para Heródoto, o bom historiador deve ser, ao mesmo tempo, um viajante e um buscador de conhecimentos.
A palavra história quer dizer conhecimento e foi por aí que o "pai da História" começou: Heródoto viajou todo o Egeu e a Ásia Menor, a Pérsia, o Egito e a Babilônia. Na costa africana, foi até cirenaica (saudações a Thundavala!). Percorreu o Mar Negro. Passou os últimos 20 anos da sua vida na Península Itálica, em Túrioi (hoje Torre Brodognato), ao lado de Crotona, onde Pitágoras havia instalado sua escola, um século antes. O pesquisador é isso: um leitor inveterado e um grande viajante!
Tanto Heródoto, o velho viajante nascido em Halicarnassos, quanto Homero, que viveram numa época anterior à separação Oriente-Ocidente, vão continuar sendo lidos, independentemente de se saber se pode ser provada ou não a existência de Homero (como pensava Wilamowitz-Mollendorff) ou se os poemas que levam seu nome são de autoria individual ou coletiva (como pensava Wolf, no sec. 18). Os homens do futuro vão continuar se projetando psicologicamente nas aventuras de Ulisses com a ninfa Calipso, naquela ilha de sonhos e lendas, assim como Heródoto acreditava na "providência divina".
"O homem, como parte, não compreende o todo", diz Jung em suas memórias. Mas atenção, embora não compreenda o todo, o homem é subordinado a ele, diz Jung: " está a sua mercê!"
[ Da obra: Jazz em Jerusalém, de Victor Leonardi com citação de C. Jung, Memórias, sonhos, refelexões, op. cit.]

Baco

Um Cristo abre os braços em desvarios e a beneficência da cruz não satisfaz a fome do arame que enverga.
Dionísios vertem veias nos casulos corrompidos de absinto e a falsa inocência se perde.
Esfomeada pelas ruas, a mordaça messalina engarrafa líquens engolidos por virilhas de vespas.
E há fome nas calçadas em brasa, há fome impelida em todas as dobras, há fome martelada no saguão de entrada, gotejada na mucosa da caserna, impenitente no precipício do abutre ereto!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Fragmentos

Cores e som encorajam a experimentação e promovem a flexibilidade no processo de aprendizagem. Não se dão bem com atitudes rígidas nem com a compartimentação da experiência humana. O pensamento não aceita limites vindos de fora, cerceadores de sua própria atividade. O exercício de uma profissão inventiva exige indivíduos acostumados à diversidade, donos de uma visão articulada, policêntrica e possibilista. Sem cair, necessariamente, naquele espírito iconoclástico das primeiras vanguardas, pois alguém pode ser absolutamente moderno, embora seu pensamento tenha raízes lá atrás, em Rabelais ou em La Boétie, na França do século XVI.
Criativa foi a vida de Chaplin, no cinema, a de Thomas Edson, em sua oficina de inventor, a de Madame Curie, nas pesquisas científicas, a de Leonardo da Vinci, nas ciências e na pintura, a de Isadora Duncan, na dança, a de Gaudí, na arquitetura, a de Mozart, na música, ou Sarah Bernhardt, como atriz. Sem imaginação não teríamos os quadros pintados por Cézanne, nem o teatro moderno de Beckett. Os valores do espírito, em grande parte, se distinguem por esse critério: maior ou menor capacidade imaginativa. No entanto, muito intelectual moderno ainda subestima a imaginação. Quanto à fantasia, muita gente nem sabe o que é.
Lógica e método científico não excluem o sentimento e a sensação, ao contrário, fazem parte das sínteses que o pensamento contém. A razão é apenas uma parte da consciência. Breton dizia que o jogo livre e ilimitado das analogias é a chave para se escapar das prisões mentais: a intuição passa a ter um valor semelhante ao piano de Duke Ellington. São formas de conhecimento de planos da realidade que chamamos de supra-sensíveis. Bachelar escreveu sobre as relações entre a ciência e o imaginário. Max Milner, mais recentemente, também. E a História da Arte, a História da Literatura e a História das Religiões só podem ser estudadas assim.
Também não há nada mais pacífico, na sua cor verde, do que uma planta. No entanto, sua capacidade de síntese é revolucionária... sem a fotossíntese, feita por um silêncio artístico pelas plantas, não haveria vida na Terra, como a conhecemos hoje. Nenhum animal. Nenhum ser humano. Exemplo de simplicidade e enígma, exemplo de criatividade e luz no universo.
[ Da obra: Jazz em Jerusalém, de Victor Leonardi]

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Time of think

"Nenhum homem nasce com raízes no solo: nasce com raízes em sí!"
[Victor Leonardi]
Cora Coralina, na sua simplicidade goiana, escreveu:
" eu sou a terra milenária, eu venho de milênios/ eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada no ventre escuro da terra".
Carlos Drumond de Andrade, que admirava Cora, escreve à escritora de Goiás: "Admiro e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais".... 14/07/79.
A filosofia e a poesia fez de Heidegger o grande filósofo que ele foi. Tão mal compreendido quanto Nietzsche, tão mal compreendido como Empédocles, ambos filósofos da terra. Não por acaso escreveram poesia como Cora Coralina em Goiás, e sentiram intensamente a força da natureza.
A literatura não precisa ser edificante, nem moralizante, ela também pode ser lírica, lúdica,romântica ou labiríntica, criando mundos novos por meio da imaginação. Como sempre fez Jorge Luís Borges, o que dá um charme muito especial para os seus pensamentos.
O hábito de pensar é tão importante quanto o da leitura, porque qualquer estudioso pode facilmente ler um livro, ou mesmo dois por dia, mas não pode suprimir jamais, o tempo de pensar!
*
[Da obra de Victor Leonardi]

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

EUA


É necessário dizer que há muitas coisas ocultas.
Pensamentos cuidadosos e perturbações sem tempestades visíveis, tão intensos quanto os cenários das verdades consumadas.
O que escondem nossas cortinas? Vaidades adormecidas?
Um país entrecorta sentimentos, como lâminas supostas, tornando distante a margem segura.
O que nos afoga? O espetáculo vulnerável das embarcações?
Desgovernados somos sonhos perdidos, de enredos impalpáveis, porque a feiúra humana não suporta a beleza das pequenas coisas.
O que nos distrai de nossos juízos? Sofismas aveludados?
Não nos espantam as mentiras alheias, mais que a cegueira de nossas falsas verdades!
*

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Quintanamente


Não sou mais quem era, mas ser diferente daquela que fui, me faz continuar sendo eu mesma.
Tão poucas pessoas são elas mesmas! Para serem, mais vezes, outras. Sem nunca terem sido nenhuma.
Ser apenas quem se é. Isso não nos mofa. O que mofa é a aparência que nos engana os sentidos.
E não somos o que aparentamos. Somos o apenas. 
A não-aparência do duplo-profundo.
Ser apenas quem se é. E o que compreendemos ser.
Não aquilo que tentamos disfarçar, sem jamais termos sido.
Ser apenas quem se é. Para o uso comum.
Não com uma mentira coexistente, nem com uma verdade cega.
Quintanamente. O mais desnudo. Para a nossa hora final.
Onde as máscaras, todas,
ficam!
*

domingo, 2 de novembro de 2008

À margem da flor

A morte tinge de preto nossos tecidos e morremos uma floresta, ao chorarmos com a alma vazia de pólen, um amigo coberto de flor. A vida fica tão miseravelmente nítida quanto a mortalidade suposta. Forrados de jardins, somos fragâncias rompidas pela metade. Enquanto a vida, roída de mentiras mansas à margem de todas as coisas, nos escapa com os cabelos brancos empalidecidos de seus teatros. E não sendo suficientemente capazes de atuá-la, com seus amores deformados e intranquilos, nosso corpo cai, guilhotinado do excesso que nos tomba, à margem decepada da flor. Com os pés severos e as mãos mancas de coragem!