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domingo, 27 de maio de 2012

Verdades simbólicas




Gosto muito de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Contam factos, acumulam testemunhos, relatam acontecimentos mas é tudo por fora, e saio delas sem conhecer um pito da pessoa a que o livro se refere. Sem conhecer um pito do que a pessoa é. (...) Queria uma vida e dão-me historinhas porém, como gosto de historinhas, divertem-me. Não se consegue ter acesso ao interior de um homem ou de uma mulher através de episódios inevitavelmente exteriores. O que eles sentiram permanece inviolado. 


As Biografias
De António Lobo Antunes


Toda a verdade é simbólica e, daí, a impossibilidade de qualquer biografia, necessariamente descritiva. O problema é que existe em mim suficiente curiosidade mexeriqueira que as biografias satisfazem e também uma certa pequenez, em pessoas que no geral admiro, que me encanta. O lado quotidiano, pequenino, até mesquinho, das pessoas, sempre me atraiu, da mesma forma que sou capaz de passar horas a observar os códigos dos insectos. E a nossa vida, deixemo-nos de tretas, é feita de acontecimentos minúsculos, cujo carácter microscópico me encanta. Os breves surtos de grandeza da nossa existência são tão breves! Merecemos morrer porque a nossa dimensão é quase nula, desaparecermos, como as minhocas, no interior da terra. Não há grandes homens: há actos que, às vezes, são grandes e, acabados esses actos, regressamos de imediato, ao nosso curtíssimo tamanho, bichos da terra tão pequenos, ó irmão Luís. 


Há um livro de Gertrude Stein, chamado Autobiografia de toda a gente. O título é óptimo, a obra não vale nada mas, em certo sentido, o que as pessoas que escrevem tentam conseguir é essa Autobiografia de toda a gente: há mil maneiras de o tentar, ignoro se há alguma de o conseguir. Estava a acabar esta frase e veio-me à cabeça Balzac moribundo, a pedir socorro aos vários médicos que criou na Comédia Humana: o criador implorando ajuda à criatura faz todo o nexo para mim, nos livros que deixamos sucede sempre isso. Pergunto-me se a única biografia possível de um artista não será a da sua obra, página a página, capítulo a capítulo. E a maneira de conhecer o biografado estudar-lhe o trabalho porque, ao fim e ao cabo, é o único sítio em que a pessoa está. 


Claro que isto não me tira o prazer de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Acho que as leio por isso, por não biografarem nada, a não ser uma pessoa inventada a quem atribuímos um nome real, pormenores reais, episódios reais, quando a vida nada tem a ver com essa realidade. Tudo é excepcional e se passa a outro nível. E, depois, não podemos acreditar no que o objecto do nosso estudo diz. Quando Fields afirma "as mulheres são como os elefantes. Gosto de olhar para elas mas não gostava de ter uma em casa" que biógrafo o toma a sério? Quando Kraus anuncia "não gosto de me meter nos meus assuntos privados" quem o acredita? Porém estes, contarelos divertem-me e a ideia de Tchecov a morrer bebendo champanhe enternece-me. Só que as vidas deles foram outra coisa. Uma biografia autêntica tem que ter as páginas em branco. Muitas páginas em branco. Todas as páginas em branco. Depois a gente lê o branco muito devagarinho e com muito cuidado e tudo quanto lá está, percebemos então, é verdade.



Bonjour, Lobo Antunes!

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