terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Rente ao chão


O pátio é agora um quadrado de luz. Sem gatos nem sombras; apenas o silêncio das paredes, intacto. Rente ao chão, um exercício de entropia: tabuletas gastas, loiça em cacos, o balde cheio de pregos tortos, aguarelas refeitas pela chuva, baús que guardam segredos, estantes rendidas à poeira, um par de asas falsas, a túnica com rasgões e duas malas de couro manchadas pelo tempo, vazias.
Ao canto, o relógio partido e os ponteiros soltos. Um deles aponta para as nuvens, lá muito ao alto. O outro aponta para nós, para aqui, para estes inumeráveis labirintos.

[José Mário Silva, in Nuvens e Labirintos, 2001]


Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco mais.
Palavras que te quero confiar, para que não se extinga o seu
lume, o seu lume breve.
Palavras que muito amei, que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

[ O sal da língua/ Eugénio de Andrade]

Ao meu pai e minha mãe!

domingo, 28 de dezembro de 2008

Age quod agis

[Lat: Presta atenção no que fazes]

"Temos que descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de descobrir o herói, assim como o parvo, que reside em nossa paixão pelo conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria." 

[Nietzsche]


"O amor é uma troca entre duas correntes de energias, dois pólos opostos mas complementares. Não é o corpo físico que inspira o amor, muitas vezes ele só intervém no fim do processo como um culminar, só vem na sequência. O que inspira o amor é algo invisível. Em geral, dá-se mais importância ao corpo do que aquela que ele possui realmente. Mas colocados lado a lado, os cadáveres de dois seres que se amaram, abraçam-se? Não, mas as suas almas, que são vivas, continuam a relacionar-se. É a vida nas criaturas que provoca atracção ou repulsa. Portanto, antes de os corpos serem atraídos um para o outro, houve correntes fluídicas que os levaram a aproximar-se; os corpos apenas seguiram o movimento, bem no fim deste processo." 

[O. Mikhaël Aïvanhov]

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Stone


"A maior parte das pessoas realmente não nos interessa, penso eu o tempo todo, quase todas as que nós encontramos não nos interessam, não têm para nos dar senão a sua mesquinhez das massas e a sua estupidez, e com isso nos aborrecem sempre e por toda a parte e, naturalmente, não temos por elas o mínimo interesse."

[Thomas Bernhard (1931-1989) "in Derrubar Árvores - uma irritação"/Lisboa: Assírio e Alvim, 2007]


"Em todos os ramos
por onde pousaste
reclinei-me de frio."

[Armando Artur/ poetas revelados/ 1962]


"A poesia está guardada nas palavras- é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por esta pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios."


[Poema de Manoel de Barros]

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

à vol d'oiseau

"Segui com os olhos um inseto negro que fazia no ar um sulco espumoso e gelado. A perpétua juventude do mundo me deixa sem ar. Coisas que eu amei desapareceram. Muitas outras me foram dadas. Ontem à tarde, eu subia o Bulevar Raspail e o céu estava carmesim. Pareceu-me caminhar num planeta estrangeiro onde a relva fosse violeta, a terra azul. As árvores abrigavam o avermelhar de um anúncio a néon. Andersen aos sessenta anos maravilhava-se por atravessar a Suécia em menos de vinte e quatro horas quando em sua juventude a viagem durava uma semana. Conheci deslumbramentos semelhantes: Moscou a três horas e meia de Paris! Reflexos, ecos se encadeando ao infinito. Descobri a doçura de ter atrás de mim um longo passado. Não tenho o tempo de me narrar, mas às vezes, de improviso, eu o vejo em transparência ao fundo do momento presente: ele lhe dá sua cor, sua luz, como as rochas e as areias se refletem na cintilação do mar. Antigamente, eu me embalava com projetos, com promessas. Agora, a sombra dos dias mortos aveluda-me emoções e prazeres."

[A Mulher Desiludida - Simone de Beauvoir]

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O tempo e o quilômetro

"... quando me lembro de ter 4 anos e de estar a brincar no quintal, não sei onde terminam as imagens que os meus olhos de 4 anos viram e que permanecem até hoje comigo, ou onde terminam as imagens que inventei sempre que tentei lembrar-me desta tarde... ou quando era pequeno e me sentava ao lado do tempo..." 

[José Luís Peixoto]

" Corro o mais depressa que consigo, como se fugisse daquilo que mais me assusta, como se fosse possível fugir daquilo que levo no interior da minha pele e vai comigo para todos os lugares... corro... como se pudesse deixar-me prá trás... tão depressa que, num momento, me soltasse de mim e me deixasse a mim próprio prá trás, como se avançasse para fora do meu corpo e, através da velocidade, me purificasse... quilômetros e minutos... as pernas a tentarem destruir o mundo de uma maneira que os meus braços não eram capazes... " 

[José Luís Peixoto]

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Dream


Sonhos ventam vales de cinzas onde o pó levanta todos os juízos 
em nuvens de decências desiguais...
Sonhos lançam os seus rugidos à via férrea e descarrila toda a ternura 
na ponta de versos roucos...
Sonhos trocam apertos de mãos e, como ameixeiras floridas, nos alimentam de pormenores breves e fugidios, que nos soletram trilhos e nos convertem em caminhos 
pelos quais, um dia, fugimos...
Sonhos são murmúrios esguios, saídos de uma escrivaninha castrada, que nos esconde afeições bizarras, 
dentro de suas secretas gavetas!

domingo, 7 de dezembro de 2008

Fair play

Imaginei que nascessem sonhos das coisas mais simples e que essas coisas simples fossem um instante delicado entre o afeto e a palavra. Imaginei que os gestos amparassem a aflição lentamente, como um filho ao cólo, e crescessem flores no vazio das tristezas passadas. Quando ainda não me existia este peso infinito, repetidamente sólido, por dentro, eu era todas as minhas alegrias refletidas. Eu era a minha alegria somada a alegria de todos, porque sorrir era uma dessas coisas simples. Hoje o meu sorriso já não é mais o mesmo. Tem um silêncio partido ao meio. Onde as coisas se partem com a simples partida das coisas imensas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Nec semper lilia florent lat


[Nem sempre florescem os lírios!]


Como não posso te tocar, te respiro. Entrecortada por tempestades, te propago num aroma típico que te permite continuar a existir. A saudade que flui não necessita de formas definidas perdidas num gesto, e o seu caminho não cabe nos trilhos de um decreto barrôco, sombreado por hábitos que, inesperadamente, atravesso. Sempre à espera de uma palavra tua.
Há muitas fadas e esquilos em teus telhados, enquanto o dia é um veleiro interminável nas palmas de tuas mãos. Quando mergulho em teu silêncio, não choro nunca, porque em teu silêncio não há dor, essa poeira triste que, uma vez desperta, penetra nos olhos e não nos deixa dormir. Mas entre os véus dos meus dedos, sei que flutuas e dormes. Como se sentisse frio e se encolhesse. Como se afastasse demônios e se encontrasse.
Sopro liberdade em teus ouvidos e a solidão da noite se espalha para longe, onde não estamos subordinados ao sol. Os teus jardins bebem de meus orvalhos com a mesma liberdade de escolha. As aventuras do espírito não asfixiam a vegetação dos teus olhos, maduros e justos, porque eles se impregnam de um frescor que derrama paisagens sobre mim. E quanto mais me olhas, mais mares e colinas sou, pontilhada de poemas.
E só me afasto de ti quando é chegada a minha hora. E os meus olhos, dissolvidos dos teus, reinventam Macbeth, tristemente, dando palavras mornas à dor.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Vive la France!

"A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar." [Rubem Alves]

Vai, minha tristeza, e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe, numa prece, que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
Mas, se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim! ;)
[Chega de saudade-Vinícius de Moraes]

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Palavras densas


[Bois uivantes -Arte de Fernando Bonafé] 

Vejo presente um tempo passado sob os teus ossos encolhidos. Passado que não passa e não te deixa ir além das coisas tristes. Porque as coisas tristes nos enganam. As coisas tristes nos confundem. As coisas tristes nos anulam e duram quase que infinitamente.
Não sei do que te escondes, quando o dia nasce e és tu quem morre. Morre uma morte de mágoa. Uma morte íntima. Uma morte roída. Não morrem os dias, não morrem as virtudes, não morrem as infâncias. Morre apenas tu. Como um semivivo, como um soterrado, cuja alegria é de uma inocência já morta.
Por instantes, e apenas por instantes, as sobras de tua existência seguem adiante de teu pesado fardo. E quando te livras do medo, quando te esqueces do medo, quando avanças sobre ele, carregas toda a luminosidade do mundo. Dentro e fora!

domingo, 30 de novembro de 2008

Palavras líquidas


Felicitei-me por ter nascido livre e meu primeiro choro, selvagem e abstrato, me concedido, no grito, o repouso. Mas o senso lamentou-me o cálculo, tornando-me adulta para sempre.
Eu, que era tão jovem, e ainda não conhecia o rosto sonolento da fatalidade, me cortava em teias de esquecimentos, ofegando intervalada, berço e veredito.
Enrugavam-se meu dias tolhidos, macerados de prazeres, com olheiras cochichadas de vícios e as horas sovadas de insônia, enferrujando minha consciência e impondo-me a velhice.
Mas eu não a queria assim, sem rugas bordadas de sublimidades, sem olhos confessos de filhos a me iluminar delícias nas órbitas.
Sem riso, sem gozo, como uma gruta fria de cabelos pontiagudos, incinerada de consternação. Mas já era tarde.
Desabitada de infância e ecos, me supondo repetidamente em gritos, eu já não passava de um passarinho castigado, piando baixinho, doído de chuva.

sábado, 29 de novembro de 2008

Palavras mornas²

"Deito-me e há um violoncelo dentro da minha cabeça. Mais ninguém ouve. Só eu sei quem me está a tocar."
[Diário de Bernfried Järvi]

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Palavras mornas¹


Em teus troncos, sou a ave que busca a fruta ante o vento da cólera que nos derruba folhas sêcas. Elevo-te e multiplicas. Entrelaças-me e dás sombras!

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Nãos e dentes

Atira-nos a mordida e se afasta, em nãos e dentes, intácta, pouco se importando com a miséria da nossa incompreensão.
A chamamos de vida e tudo que nos representa é ferida e inferno, equívoco e pântano.
Nãos e dentes, e sangramos cotidianamente um desassosego acrobático, um fracasso de morte, descartados de possibilidades e escoltas.
E se é um coração que só subtrai, indecifravelmente vivo nesta operação rítmica de perdas.
A vida espia-nos com a cabeça ereta e o bote engatilhado, suposto de que escaparemos.
E não há concessões, não há chances para mim, para você, para os porcos, os peçonhentos, enquanto, o resto, segue feliz em suas comédias somadas de embuste e hipocrisia.
Nós, nãos e dentes, entulhados de desilusão absoluta, cumprimos sentenças irremediáveis de clausura e nulidade, subtração e gemido!

domingo, 23 de novembro de 2008

Sementes


Pessoas martelam-se como um pêndulo a se repetir, a se balançar, a se ferir num peito de ferro. Com seus rostos mudos e invioláveis, não esperam nada da vida, não esperam nada de sí. Esperam, talvez, a chuva derramar um sentido sobre os telhados dos homens imundos. E ainda que a chuva não caia, e a maldade dos homens se arraste pelas frestas, com a cara amarrada, cansada de sí, permanecem a esperar. Duras e imóveis. Como as sementes, que esperam a água escorrer para o lado de dentro das coisas secas, a vida esquecida do lado de fora!

sábado, 22 de novembro de 2008

Silêncio


"Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso... quando paro de pensar... há vento que tráz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos... quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta... é também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade!"

[Da obra:Cemitério de pianos- de José Luís Peixoto]

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Feixes de hortelã


Tenho teu sorriso estendido em lençóis para que floresça e ria minha cama, 
assim como os meus olhos molhados de mármore para lamber tua pele ao acordar.
Tenho teu gosto amarrado como feixes de hortelã em meus cabelos compridos de tua falta.
Tenho tuas carícias infladas nas mãos para que me vaporizem jatos de calêndulas 
e eu o colha completo nos cêstos de todas
as manhãs.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Flores viúvas


O comboio segue rota e direção na fila dos desconvidados. 
Pedaços partidos de paisagem pregam gente demolida como estacas ao chão. 
Crianças sem ninhos buscam árvores caídas das asas de morcegos onde, atiradores e vítmas, sucumbem imundos do mesmo pó. 
Botas rastejam dementes seus soldados, pisoteando flores viúvas no fosso de gente. 
Todos beijados pela mesma boca bastarda de fuzís!

domingo, 16 de novembro de 2008

A Criança em ruínas


"um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for tão distante, quando o frio responder com a vóz arrastada de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da nossa janela..."
[Da obra de José Luís Peixoto- Portugal]

Nenhum olhar...


O teu olhar ficará no meu olhar quando morrer e, morto, contemplar as planícies que serão o teu olhar a anoitecer lento. O teu olhar ficará nas minhas mãos esquecidas e ninguém se lembrará de o procurar aí. Penso: nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas estão, porque nunca ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens, ou um olhar. E tu. Continuarás perdendo o silêncio por mãos esquecidas, irá a enterrar o teu silêncio dentro dentro do meu peito mulher tantas vezes. Mulher repetida na respiração de um lugar passado ou morto. Tempo e vida. Mulher, não sei o que fomos. Sei que, hoje, te possuo. Hoje conheço-te. É meu o teu olhar e o teu silêncio. E de nada me serve já, porque avanço para onde os homens deixam de ser homens. Faço o caminho solitário por entre as ruínas da vida. O caminho onde tudo é muito pouco, e cada uma dessas coisas pequenas é demasiada!

[Da obra de José Luís Peixoto - Portugal]

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O banquete!

[Imagem DentroDarte]

Ninguém ouvirá.
Não cairão chuvas, não correrão viélas, não riremos imoderados. Toalhas obesas adormecerão esparramadas sobre tapetes cordiais que, em delícias masoquistas, afagarão os pés que os esmagam. Ninguém saberá. Não lamberão sapatos, não respirarão destróços, não choraremos flor de laranjeiras. Os episódios se afogarão em caldo de pimenta na fogueira lírica dos conflitos e cozinharão a ardência universal da vida. Ninguém dirá. Não abaterão novelos, não explodirão canetas, não seremos os únicos coitados. Os escárnios abrirão comportas de larvas sobre a salada de raças e nos devorarão num banquete duvidoso. Ninguém rirá!

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Conceitos, cerejas e chamas

Anéis bóiam seus dedos em pormenores tão profundos, que a ociosidade das mãos não é senão um subterfúgio 
do braço turbulento que descansa do combate.
Como um rito, nos arrastamos sobre as mênades, aquilatados de desejos,
onde qualquer palavra perde o sentido diante da fogueira
tragada de punhais.
A boca desconhece os próprios dentes e limita-se a rir dos insultos que profere,
se distraindo cínica de seus próprios deuses.
Encouraçados de aversões recíprocas, esburacamos a alma de infâmias e mandíbulas.
Depositamos todos os escândalos na bandeja atormentada da lógica que, insultada da volúpia desmedida, 
aprisiona o corpo na fronte, mastigando infeliz, 
conceitos, cerejas e chamas!

domingo, 9 de novembro de 2008

Mundo-livro


"Quando estou sozinho na minha biblioteca, no mais profundo isolamento
Sou capaz de ficar nove, dez, doze horas sem falar com ninguém. Chego até a desligar o telefone durante essas horas.
Meu horizonte visual fica então contido entre volumes grandes e pequenos
Marrons, negro, azuis, com ou sem encadernação de couro ou dourado na lombada. É esse o meu mundo, assim, limitado, mas sem restrições:
Minha biblioteca está além das barreiras da construção e do cálculo.
Nela, meu espírito não é mais estado, mas atividade.
Quem chegar aqui sem ser anunciado
Não vai ver a imagem de uma figura de cabelos brancos, nem o espaço entre as estantes,
Mas uma relação abstrata, totalmente inaplicável aos fatos sensíveis.
Depois, saio para a rua, doze horas mais tarde.
Encontro o meu vizinho falando de taxas de câmbio. E o dono da banca de jornal, com sono, ao lado das manchetes que falam das eleições de 15 de novembro.
Vou até a padaria, pego um litro de leite, dois pães e meio quilo de café.
Pago no caixa e volto para casa, tomando cuidado para atravessar a rua, por causa do trânsito.
Enquanto o elevador me leva de volta para a minha biblioteca
Fico achando que esta realidade envolvente é uma mera hipótese
Onde tudo é menos, embora num horizonte sem limites.
Quando entro de novo, no meu diminuto espaço, entre os tomos e as estantes
Sinto uma espécie de volta heróica a um território infinito.
Às vezes Madame Bovary aparece, ou Fausto, ou Siegfried.
A gente conversa o resto da noite, generosamente.
Enquanto isso, lá na rua, a vida se coagula mais um pouco
Em sua anônima trama caótica.
Quando o dia amanhece de novo, meu pequeno mundo-página
Parece um majestoso edifício de papel, no seu incorrigível otimismo.
Otimismo trágico, é verdade, com poucos indivíduos
Mas repleto de relâmpagos."

[ Da obra: Território do escritor, de Victor Leonardi ]

sábado, 8 de novembro de 2008

Fosso

A pirâmide de Keops virou cartão postal. O Oriente seguiu por um lado, e o Ocidente por outro. Estão de mal há 2.000 anos e não está fácil fazerem as pazes. A Europa brigou com sua irmã Ásia. Radamanto já está cansado de tanto julgar almas esquizofrênicas.

A sabedoria antiga se dispersou, e o inconsciente foi para o subterrâneo. Sacrovir foi vencido por Tibério e por Sílio. Nossa mente ficou esfrangalhada, e até hoje estamos remontando o quebra-cabeças!

[Da obra: Jazz em Jerusalém, de Victor Leonardi]

O bom viajante

O historiador que não quiser persistir no caminho da esquizofrenia (metodológica) deve reler Heródoto com mais atenção. Para Heródoto, o bom historiador deve ser, ao mesmo tempo, um viajante e um buscador de conhecimentos.
A palavra história quer dizer conhecimento e foi por aí que o "pai da História" começou: Heródoto viajou todo o Egeu e a Ásia Menor, a Pérsia, o Egito e a Babilônia. Na costa africana, foi até cirenaica (saudações a Thundavala!). Percorreu o Mar Negro. Passou os últimos 20 anos da sua vida na Península Itálica, em Túrioi (hoje Torre Brodognato), ao lado de Crotona, onde Pitágoras havia instalado sua escola, um século antes. O pesquisador é isso: um leitor inveterado e um grande viajante!
Tanto Heródoto, o velho viajante nascido em Halicarnassos, quanto Homero, que viveram numa época anterior à separação Oriente-Ocidente, vão continuar sendo lidos, independentemente de se saber se pode ser provada ou não a existência de Homero (como pensava Wilamowitz-Mollendorff) ou se os poemas que levam seu nome são de autoria individual ou coletiva (como pensava Wolf, no sec. 18). Os homens do futuro vão continuar se projetando psicologicamente nas aventuras de Ulisses com a ninfa Calipso, naquela ilha de sonhos e lendas, assim como Heródoto acreditava na "providência divina".
"O homem, como parte, não compreende o todo", diz Jung em suas memórias. Mas atenção, embora não compreenda o todo, o homem é subordinado a ele, diz Jung: " está a sua mercê!"
[ Da obra: Jazz em Jerusalém, de Victor Leonardi com citação de C. Jung, Memórias, sonhos, refelexões, op. cit.]

Baco

Um Cristo abre os braços em desvarios e a beneficência da cruz não satisfaz a fome do arame que enverga.
Dionísios vertem veias nos casulos corrompidos de absinto e a falsa inocência se perde.
Esfomeada pelas ruas, a mordaça messalina engarrafa líquens engolidos por virilhas de vespas.
E há fome nas calçadas em brasa, há fome impelida em todas as dobras, há fome martelada no saguão de entrada, gotejada na mucosa da caserna, impenitente no precipício do abutre ereto!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Fragmentos

Cores e som encorajam a experimentação e promovem a flexibilidade no processo de aprendizagem. Não se dão bem com atitudes rígidas nem com a compartimentação da experiência humana. O pensamento não aceita limites vindos de fora, cerceadores de sua própria atividade. O exercício de uma profissão inventiva exige indivíduos acostumados à diversidade, donos de uma visão articulada, policêntrica e possibilista. Sem cair, necessariamente, naquele espírito iconoclástico das primeiras vanguardas, pois alguém pode ser absolutamente moderno, embora seu pensamento tenha raízes lá atrás, em Rabelais ou em La Boétie, na França do século XVI.
Criativa foi a vida de Chaplin, no cinema, a de Thomas Edson, em sua oficina de inventor, a de Madame Curie, nas pesquisas científicas, a de Leonardo da Vinci, nas ciências e na pintura, a de Isadora Duncan, na dança, a de Gaudí, na arquitetura, a de Mozart, na música, ou Sarah Bernhardt, como atriz. Sem imaginação não teríamos os quadros pintados por Cézanne, nem o teatro moderno de Beckett. Os valores do espírito, em grande parte, se distinguem por esse critério: maior ou menor capacidade imaginativa. No entanto, muito intelectual moderno ainda subestima a imaginação. Quanto à fantasia, muita gente nem sabe o que é.
Lógica e método científico não excluem o sentimento e a sensação, ao contrário, fazem parte das sínteses que o pensamento contém. A razão é apenas uma parte da consciência. Breton dizia que o jogo livre e ilimitado das analogias é a chave para se escapar das prisões mentais: a intuição passa a ter um valor semelhante ao piano de Duke Ellington. São formas de conhecimento de planos da realidade que chamamos de supra-sensíveis. Bachelar escreveu sobre as relações entre a ciência e o imaginário. Max Milner, mais recentemente, também. E a História da Arte, a História da Literatura e a História das Religiões só podem ser estudadas assim.
Também não há nada mais pacífico, na sua cor verde, do que uma planta. No entanto, sua capacidade de síntese é revolucionária... sem a fotossíntese, feita por um silêncio artístico pelas plantas, não haveria vida na Terra, como a conhecemos hoje. Nenhum animal. Nenhum ser humano. Exemplo de simplicidade e enígma, exemplo de criatividade e luz no universo.
[ Da obra: Jazz em Jerusalém, de Victor Leonardi]

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Time of think

"Nenhum homem nasce com raízes no solo: nasce com raízes em sí!"
[Victor Leonardi]
Cora Coralina, na sua simplicidade goiana, escreveu:
" eu sou a terra milenária, eu venho de milênios/ eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada no ventre escuro da terra".
Carlos Drumond de Andrade, que admirava Cora, escreve à escritora de Goiás: "Admiro e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais".... 14/07/79.
A filosofia e a poesia fez de Heidegger o grande filósofo que ele foi. Tão mal compreendido quanto Nietzsche, tão mal compreendido como Empédocles, ambos filósofos da terra. Não por acaso escreveram poesia como Cora Coralina em Goiás, e sentiram intensamente a força da natureza.
A literatura não precisa ser edificante, nem moralizante, ela também pode ser lírica, lúdica,romântica ou labiríntica, criando mundos novos por meio da imaginação. Como sempre fez Jorge Luís Borges, o que dá um charme muito especial para os seus pensamentos.
O hábito de pensar é tão importante quanto o da leitura, porque qualquer estudioso pode facilmente ler um livro, ou mesmo dois por dia, mas não pode suprimir jamais, o tempo de pensar!
*
[Da obra de Victor Leonardi]

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

EUA


É necessário dizer que há muitas coisas ocultas.
Pensamentos cuidadosos e perturbações sem tempestades visíveis, tão intensos quanto os cenários das verdades consumadas.
O que escondem nossas cortinas? Vaidades adormecidas?
Um país entrecorta sentimentos, como lâminas supostas, tornando distante a margem segura.
O que nos afoga? O espetáculo vulnerável das embarcações?
Desgovernados somos sonhos perdidos, de enredos impalpáveis, porque a feiúra humana não suporta a beleza das pequenas coisas.
O que nos distrai de nossos juízos? Sofismas aveludados?
Não nos espantam as mentiras alheias, mais que a cegueira de nossas falsas verdades!
*

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Quintanamente


Não sou mais quem era, mas ser diferente daquela que fui, me faz continuar sendo eu mesma.
Tão poucas pessoas são elas mesmas! Para serem, mais vezes, outras. Sem nunca terem sido nenhuma.
Ser apenas quem se é. Isso não nos mofa. O que mofa é a aparência que nos engana os sentidos.
E não somos o que aparentamos. Somos o apenas. 
A não-aparência do duplo-profundo.
Ser apenas quem se é. E o que compreendemos ser.
Não aquilo que tentamos disfarçar, sem jamais termos sido.
Ser apenas quem se é. Para o uso comum.
Não com uma mentira coexistente, nem com uma verdade cega.
Quintanamente. O mais desnudo. Para a nossa hora final.
Onde as máscaras, todas,
ficam!
*

domingo, 2 de novembro de 2008

À margem da flor

A morte tinge de preto nossos tecidos e morremos uma floresta, ao chorarmos com a alma vazia de pólen, um amigo coberto de flor. A vida fica tão miseravelmente nítida quanto a mortalidade suposta. Forrados de jardins, somos fragâncias rompidas pela metade. Enquanto a vida, roída de mentiras mansas à margem de todas as coisas, nos escapa com os cabelos brancos empalidecidos de seus teatros. E não sendo suficientemente capazes de atuá-la, com seus amores deformados e intranquilos, nosso corpo cai, guilhotinado do excesso que nos tomba, à margem decepada da flor. Com os pés severos e as mãos mancas de coragem!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Scõrpion

45 não tem mais que o som do seu sentido, o 45 não é a primeira letra da palavra quarenta, o 45 é esculpido de sentidos e essa é a sua forma...
45 não se lê 45, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil árvores ou céu de punhais...
45 lê-se país e mar e céu esquecido e memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, 45 lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu olhar
de menino...
45 não é esta caneta de tinta preta, não é esta vóz, não é a primeira letra da palavra quarenta...
45 não se escreve com letras... escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos,
gritos e incertezas...
45 existe para não ser escrito, como eu existo para não ser escrita, para não ser entendida, nem sequer por mim própria, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou...
*
Aos escõrpianos del mondo :)
* [Montagem-homenagem ao Poema de José Luís Peixoto, outro amigo do burgo!]

Tuas tigelas

Recolho teus ombros de dentro dos casacos, dobro braço, antebraço, cotovelo, tudo que o lembre, que o faça pairar no ar, assim como teu cheiro, que retiro com máscaras e nadadeiras, de dentro de todos os perfumes. O cancelo dos meus dias santos, de todos os espasmos e esquinas, arrancando boca e paladar das tuas tigelas agarradas em minha mesa, todas as manhãs, e decreto tua miserável partida. Nada restou de tí. Movo ensaboado todos os nojos e a água limpa móe pétalas de dores! 
*

Olhos cegos

Tinha os cabelos cansados e as vestes tristes distanciadas do fóssil dos seus zêlos.
Ofertava ave-marias aos descartados, monologando feridas com a vóz polimorfa da desolação. 
Enquanto tudo era destruído, serviu seus mortos na mesa da antevéspera,
alternando o muro e a reza.
As molas indulgentes dos relógios suplicavam suas limalhas e, o tempo, desmedido,
jorrava bombas aos penitentes.
Empoeirado, encaixotou maciamente suas crianças, como framboezas nas bancas do mercado 
E despediu-se, apiedado das sombras, tornando-se noite 
aos olhos cegos da guerra!
*

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Lavas de piano


Uma palavra que se deve esquecer, um pássaro que não se observou por ausência, uma paixão eclipsada de valores inúteis que o amor nunca irá tocar.
E os dias são ilegítimos quando as pessoas são supostas.
Um bom momento é sempre um fado doce e contraditório, arrastado de desejos, onde há sempre um obstáculo ferindo instâncias, enquanto, a felicidade, perece com as peras.
Se há infelizes, ninguém se reconhece neles, imunes de suas próprias tempestades. 
Mas há sempre um dano apontado para o muro inclinado 
sobre o cão miserável de nossos afetos.
A mediocridade, embalsamada de abismo e vulgo, encobre nossos prejuízos.
Mas ninguém se livra de seus vulcões quando não se sonha lavas de piano, que nos movam todos os caprichos, soprando a pólvora da contemplação dos sentidos.
E assim nos tornamos menos cinzas, menos mesquinhos, menos supérfluos, enquanto ainda se teme o piano, o pássaro, a pera e o fado, mas não se teme a ira magmática em estado de guerra, que a psique estilhaça na pata do cão! 
*

Samovar prata

"Meço a impressão que as coisas gravam em tí à sua passagem...
Impressão que permanece, ainda depois delas terem passado!"
*
[O caráter psyco-lógico do tempo - por Santo Agostinho]

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Chá de flores

[Pintura de Ann Hardy]
Derramo chá na soleira da velha porta que range as mesmas manhãs.
Não ouço o ruído dos meus passos nas tábuas e decresço 
dentro de chinelos e axiomas.
Sento-me tão pensativa que permaneço suspensa na cozinha,
como a própria terra.
Sobre a mesa o bolo interrompe peso e gravidade 
com aroma repetido de consenso e milho.
Como um vaso de madresilvas, furado no fundo a escoar a água contida, tomo chá de flores múltiplas até que escoem, também,
as minhas agonias.
Brotam cabeças sobrepostas em meus pomares e rastejam sentimentos que se alastram, como trepadeiras, até o topo dos telhados.
Onde a memória rumina a plena integridade do fruto, 
que os pensamentos, tristemente, 
apodrecem!
*

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Brisa ártica

Desaperto calmamente meus parafusos, minhas melancolias não-essenciais,
e sou uma brisa ártica.
Não a água que se arrebenta contra os rochedos.
Recolho as cinzas de todos os desaparecidos do meu convívio, ausentes de seus antigos lugares.
Pessoas que não pude reconstruir. Lugares que não pude recuperar.
Teias de aranha e môfo no alfabeto da minha história.
História transformada em triste remendo.
Remendo de vida. Vestígios de letras.
Farrapos de gente.
E vogais!
*

O perfil de Isabela!

Senhor, Me ajude a nunca desistir de ser mulher.
Coloque um espelho no meio do caminho entre a lavanderia, o supermercado, o sapateiro... E que, ao me olhar, eu goste do que vejo.
Não deixe que eu passe uma semana sem usar rímel, um salto bem alto ou um jeans mais justo. Proteja meus cabelos do vento, os brincos e anéis de olhares invejosos. Nunca deixe faltar na minha vida comédias românticas e boas depiladoras.
Se eu tiver vontade de chorar, faça com que eu chore um dilúvio. E que tenha saído de casa sem pintar os olhos.
Para cada dia triste, me dê uma vitrine de roupas lindas. Já que eu nunca pedi milagres, faça com que as minhas celulites sejam ao menos discretinhas.
Me dê saúde, tempo livre e silêncio... E que nunca falte perfume na minha gaveta. Nos engarrafamentos, faça com que eu ligue o rádio e esteja tocando minha música preferida.
Me dê forças para comer mais saladas, mais frutas. Cegue meus olhos para as sujeiras nos cantos. Ajude para que eu chegue ao trabalho inteira.
Em dias difíceis, me dê persistência para seguir na dieta. Dê também firmeza para os seios. Proteja minhas poucas horas de sono e não me julgue mal, caso eu não acorde na hora. Não deixe que minha testa fique tão franzida a ponto de parecer uma saia plissada. E eu, uma louca estressada.
Faça com que o sol seja meu personal trainer e meu complexo vitamínico,meu carregador de baterias. Mas quando eu pedir um diazinho de chuva, não me pergunte por quê.
Para cada batata quente no trabalho, me dê um café recém-passado. Entenda que, quando rezo para cancelarem uma reunião, não é gastar reza à toa, pode ter certeza.
No meio de tudo isso, faça com que eu ainda ache tempo para: - virar namorada de novo; - ir ao cinema; - jantar fora; - dormir abraçadinha.
Ilumine o espelho do banheiro e proteja meus cremes e segredos... Ajude a não faltar gasolina e não furar o pneu e, por favor, afaste os motoqueiros do meu retrovisor.
Senhor, por pior que seja meu dia... faça com que ele termine e não EU.
Amém!
Isabela M.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Otto Maria Carpeaux

Jornalista e crítico literário austríaco, chegou ao Brasil em 1939, refugiado da Guerra, e por aqui ficou até sua morte em 1978, onde deixou de herança um rico arsenal de inquietações literárias, políticas, sociológicas.
De Napoleão a Vinicius de Moraes, passando por Kafka, T.S. Eliot, Machado de Assis, James Joyce, além da análise, no calor da hora, do filósofo Jean-Paul Sartre, Carpeaux, de forma clara e intensa, sem abusar na erudição ou no hermetismo, transitava pelos mais diversos meios e pensamentos.
A utilização da metáfora e do total domínio do campo semântico são marcas características dos textos de Carpeaux.
''Não se faz crítica literária em jornal para desempenhar um papel de verdadeira ou falsa importância nos círculos limitados da vida literária. Tenho o direito de elogiar 'a vontade de escrever simples', porque já pequei também muitas vezes contra essa regra. A linguagem técnica, constantemente empregada, inspira a suspeita de servir como a roupa imaginária do rei, no conhecido conto de Andersen:
'Os cortesãos lhe elogiaram a roupa, mas enfim se descobriu que o rei estava nu''! 

Carpeaux - 15/10/1960

Texto publicado no caderno "Idéias" do Jornal do Brasil em 2006.

Campos e gestos

Perdí mãe, perdí pai, mas não o gosto pelas margaridas, pelo riso e a palavra.
Meus pés herdaram o infinito das ruas, onde carrego todos os sons de pássaros contidos neles.
Meus olhos, sublinhados de dia a dia, suprimem dores nas retinas do jardim.
Enquanto minhas mãos, tantas vezes vazias, 
semeiam vasos cíclicos a me encher 
de campos e gestos.

domingo, 26 de outubro de 2008

José Luís Peixoto - Pt

[Pintura de Norman Rockwell/ Olavo Saldanha]

"...escondia até de mim a certeza de que o tempo iria tomar alguma decisão... o tempo mistura a verdade com a mentira...
o tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira...
aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido, e com aquilo que me contaram que aconteceu...
a minha memória não é minha... a minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento..."

José Luís Peixoto

José Luís Peixoto-Pt

[Pintura de Norman Rockwell/Olavo Saldanha]

"...as histórias se desprendiam do seu corpo como
se não houvesse um fim para as histórias que
se podem contar..."

José Luís Peixoto

sábado, 25 de outubro de 2008

Calçadas

O vento sopra passos em chão violentado de fugas, que nos impede a poesia infinita espalhada nas calçadas.
E não se está só diante dos próprios pés, quando libertamos o movimento indeciso que nos dá a possibilidade de todas as danças.
Refletimos humores nos espelhos das vontades coibidas e suspendemos bailarinas na ponta oposta de todos os temores, dissipando pés de covardias
inúteis.
Um pinheiro se esvai nas nuvens e sua desigualdade contemplativa, possui uma delicadeza inocente que nos aponta um caminho para o alto.
Num abandono verde, elevado de generosidade, chora a desigualdade no homem de bem, contrapondo a própria vida,
ferida,
no tempo que não suprimimos.
E poesia não é a boca sem pêndulo, rasa de conceitos, nem mitos com olhos pasmos de fenômenos.
Mas a sublimidade invisível suspendendo gigantes no ar, que o homem esvaído de sí não percebe,
cego de pinheiros, tombado de calçadas.
*

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