quinta-feira, 31 de maio de 2012

Rukendaik


Seu nome era Hans Hoekendijk que se pronuncia “rukendaik”. Lembrando-me dele tenho saudades do tempo em que eu fumava cachimbo. O cachimbo é uma amizade fiel e vagarosa. Ele era meu colega. Reuníamos-nos à sua volta para ouvir suas histórias. Tínhamos um rádio clandestino... De noite acompanhávamos as notícias do “front” de batalha. As forças aliadas haviam desembarcado na Normandia e avançavam rapidamente na direção do campo em que estávamos presos. Fazíamos os cálculos. Avançando naquele ritmo dentro de poucos dias estaríamos livres! Foi quando o comandante do campo nos reuniu a todos no pátio."Antes que cheguem as tropas todos vocês serão enforcados!" Eu tive a maior experiência de liberdade de toda a minha vida. Se vou morrer dentro de dois dias e não há nada que eu possa fazer para evitar a morte, eu sou completamente livre para fazer e dizer o que quiser, pois nada pior que a morte poderá me acontecer.
O medo se foi… Olhei então para aquele guarda alemão, metralhadora a tiracolo, bruto e sem compaixão, que sempre me amedrontara. Agora eu posso ir até ele e dizer tudo o que penso e sinto a seu respeito. Que me pode fazer? Dar-me uma rajada de metralhadora? Melhor morrer assim que morrer enforcado. E aquela mulher - eu sempre a amei de longe, só com meus olhos. Ah! Os olhos… Os prisioneiros também amam e sonham… Eu nunca havia me aproximado dela. Iríamos morrer. Não, não se tratava de um convite à infidelidade. Diante da morte a infidelidade não existe. E nos abraçamos. Mas aí nós não fomos enforcados. As tropas aliadas nos libertaram. Voltei, então, à vida normal... voltei a ter medo e perdi minha liberdade.



Mix & trechos: 

Dias em versos

Demore-se no carinho, 
de modo que no rosto do outro 
vá a mão como se não fora 
voltar... 


Bonjour!

Eucanaã Ferraz

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Roberto Kusterle- L'uomo e la Terra










Roberto Kusterle - 63 anos, é fotógrafo, pintor e escultor italiano, que trabalha com artes visuais desde os anos 70, mais focado em trabalhos de artes plásticas. O resultado de suas fotografias, são imagens que nos remetem às esculturas clássicas, com um toque de surrealismo e intensidade, bastante perturbadores. 

Para ver mais, clique no site: 

Bonjour, Kusterle!

terça-feira, 29 de maio de 2012

O Ouriço e a Raposa


Aconteceu em 1953, em ensaio sobre Tolstói. Título? “O Ouriço e a Raposa”. E Berlin, socorrendo-se de um aforismo do poeta grego Arquiloco, relembrava: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante”.


Um jogo de palavras? Mais que isso. Para Berlin, “ouriços” e “raposas” representam dois tipos de personalidade distintos que é possível encontrar na história intelectual do Ocidente -e, naturalmente, nas nossas vidas anônimas e privadas. 


Os “ouriços” surgem movidos por uma idéia central, procurando explicar a diversidade do mundo por referência a um único sistema monista. Platão era um “ouriço”. Dostoiévski também. Marx idem. As “raposas”, pelo contrário, entendem que a diversidade do mundo não autoriza um único sistema explicativo; são pluralistas porque sabem que os fins são vários e nem sempre compatíveis entre si. Montaigne, Shakespeare ou Joyce eram “raposas” por excelência. E Tolstói? O drama de Tolstói era ser naturalmente uma “raposa”, embora desejando ser um “ouriço”. 


A divisão acabou por entrar na imaginação popular, e até Woody Allen, em “Maridos e Esposas”, filmou Judy Davis em momento de intimidade, mas incapaz de atingir o orgasmo porque demasiado preocupada em separar, mentalmente, os seus amigos em “ouriços” e “raposas”. Infelizmente, esse mundo não passa de uma ilusão. E a liberdade total dos lobos significa apenas a morte dos carneiros.


O que resta, então? 
Para Berlin, resta a certeza de que é necessário escolher: uma escolha nem sempre fácil e onde a perda é real. Exatamente como nas nossas vidas anônimas e privadas, onde não é possível ter tudo. Não por sermos fracos, ignorantes ou confusos. Mas porque essa é a natureza dos valores: abraçar uns é excluir outros.


João Pereira Coutinho

Paredes


"O que tinha de lagartixa na palavra paredes..."


Bonjour!
Manoel de Barros

domingo, 27 de maio de 2012

Verdades simbólicas




Gosto muito de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Contam factos, acumulam testemunhos, relatam acontecimentos mas é tudo por fora, e saio delas sem conhecer um pito da pessoa a que o livro se refere. Sem conhecer um pito do que a pessoa é. (...) Queria uma vida e dão-me historinhas porém, como gosto de historinhas, divertem-me. Não se consegue ter acesso ao interior de um homem ou de uma mulher através de episódios inevitavelmente exteriores. O que eles sentiram permanece inviolado. 


As Biografias
De António Lobo Antunes


Toda a verdade é simbólica e, daí, a impossibilidade de qualquer biografia, necessariamente descritiva. O problema é que existe em mim suficiente curiosidade mexeriqueira que as biografias satisfazem e também uma certa pequenez, em pessoas que no geral admiro, que me encanta. O lado quotidiano, pequenino, até mesquinho, das pessoas, sempre me atraiu, da mesma forma que sou capaz de passar horas a observar os códigos dos insectos. E a nossa vida, deixemo-nos de tretas, é feita de acontecimentos minúsculos, cujo carácter microscópico me encanta. Os breves surtos de grandeza da nossa existência são tão breves! Merecemos morrer porque a nossa dimensão é quase nula, desaparecermos, como as minhocas, no interior da terra. Não há grandes homens: há actos que, às vezes, são grandes e, acabados esses actos, regressamos de imediato, ao nosso curtíssimo tamanho, bichos da terra tão pequenos, ó irmão Luís. 


Há um livro de Gertrude Stein, chamado Autobiografia de toda a gente. O título é óptimo, a obra não vale nada mas, em certo sentido, o que as pessoas que escrevem tentam conseguir é essa Autobiografia de toda a gente: há mil maneiras de o tentar, ignoro se há alguma de o conseguir. Estava a acabar esta frase e veio-me à cabeça Balzac moribundo, a pedir socorro aos vários médicos que criou na Comédia Humana: o criador implorando ajuda à criatura faz todo o nexo para mim, nos livros que deixamos sucede sempre isso. Pergunto-me se a única biografia possível de um artista não será a da sua obra, página a página, capítulo a capítulo. E a maneira de conhecer o biografado estudar-lhe o trabalho porque, ao fim e ao cabo, é o único sítio em que a pessoa está. 


Claro que isto não me tira o prazer de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Acho que as leio por isso, por não biografarem nada, a não ser uma pessoa inventada a quem atribuímos um nome real, pormenores reais, episódios reais, quando a vida nada tem a ver com essa realidade. Tudo é excepcional e se passa a outro nível. E, depois, não podemos acreditar no que o objecto do nosso estudo diz. Quando Fields afirma "as mulheres são como os elefantes. Gosto de olhar para elas mas não gostava de ter uma em casa" que biógrafo o toma a sério? Quando Kraus anuncia "não gosto de me meter nos meus assuntos privados" quem o acredita? Porém estes, contarelos divertem-me e a ideia de Tchecov a morrer bebendo champanhe enternece-me. Só que as vidas deles foram outra coisa. Uma biografia autêntica tem que ter as páginas em branco. Muitas páginas em branco. Todas as páginas em branco. Depois a gente lê o branco muito devagarinho e com muito cuidado e tudo quanto lá está, percebemos então, é verdade.



Bonjour, Lobo Antunes!

sábado, 26 de maio de 2012

Com a noite nos lábios




Ser alegre não significa necessariamente ser brincalhão. Nada contra ter a piada pronta, mas a alegria é muito mais do que isso: ser alegre é gostar de viver mesmo quando as coisas não dão certo ou quando a vida nos castiga. É possível, aliás, ser alegre até na tristeza ou no luto, da mesma forma que, uma vez que somos obrigados a sentar à mesa diante de pratos que não são nossos preferidos, ou dos quais não gostamos, é melhor saboreá-los do que tragá-los com pressa e sem mastigar. 


(...) A riqueza da experiência compensa seu caráter eventualmente penoso. 


Essa alegria, de longe preferível à felicidade, é reconhecível sobretudo no exercício da memória, quando olhamos para trás e narramos nossa vida para quem quiser ouvir ou para nós mesmos. Para quem consegue ser alegre, a lembrança do passado sempre tem um encanto que justifica a vida. 


Para reencantar o mundo, não precisamos de intervenções sobrenaturais. Para reencantar o mundo, é suficiente descobrir que o verdadeiro encanto da vida é a vida mesmo.


Contardo Calligaris / Folha- 18/11/2010
Bonsoir!

sexta-feira, 25 de maio de 2012

No azul de sua tarde

by Tomohiro Inaba


Sou mais a palavra ao ponto de entulho. (...) 
até que padeçam de mim e me sujem de branco.





Eu sempre guardei nas palavras 
os meus desconcertos.

Sculpture by Gregor Gaida
Só quem está em estado de palavra 
pode enxergar as coisas sem feitio.

Sculpture by Vally Nomidou
Poeta: 
sujeito com mania de comparecer aos próprios desencontros.
 Manoel de Barros


Bonjour!

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Gramática do chão

O homem de lata se faz um corte na boca
para escorrer todo o silêncio dele.


Botou o rio no bolso e saiu correndo…

Perder a inteligência das coisas para vê-las. 

Manoel de Barros

Salty Seas

Vinha pingando oceano. 
Todo estragado de azul.

Manoel de Barros

Bonjour!


terça-feira, 22 de maio de 2012

The Yiddish

Sonhei que reaparecerias e que, na floresta de palavras, 
soubesse escolher apenas as necessárias.
E escolheste. 
Vestida de susto, caí dura no mar.


OH MY GOD!


segunda-feira, 21 de maio de 2012

J.K.


La esperanza hace que agite el naufrago sus brazos en medio de las aguas, 
aún cuando no vea tierra por ningún lado.
Publio Ovidio Nasón


Bonjour ao meu pai, por estes dias tão próximos:
Partida: 18-05-2004 - Aniversário em-21-05
Saudades profundas, pai!


quarta-feira, 16 de maio de 2012

A infância da língua

O menino pegou um olhar de pássaro - contraiu visão fontana. Por forma que ele enxergava as coisas por igual, como os pássaros enxergam. As coisas todas inominadas... Água não era ainda a palavra água. Pedra não era ainda a palavra pedra. E tal. As palavras eram livres de gramáticas e podiam ficar em qualquer posição. Por forma que o menino podia inaugurar. Podia dar às pedras costumes de flor.

E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais -
como o poeta Rimbaud viu...
Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul 
do silêncio.


Bonsoir!

Manoel de Barros- “Poemas Rupestres”

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Sendo sombra antes, lembra-te de mim depois...


Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
                E sem desassossegos grandes...
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantem a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados demais, porque mesmo se os tivesse 
O rio sempre correria e sempre iria ter ao mar!
Odes de Ricardo Reis 


Obrigado pelos 56.000 mergulhos,
que todos tenham um feliz dia
todos os dias!

Bonjour à todas as mães!

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O corpo do tempo

Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo que todo o sangue do corpo vem à boca numa palavra. E o vento dessa palavra é uma expansão da terra...


Herberto Helder


Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito. O vento da vida pôs-te ali. A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito. 
Pablo Neruda

Bonjour!



quarta-feira, 9 de maio de 2012

Sculptures by Matteo Pugliese



Matteo Pugliese é um talentoso escultor italiano que constroi belos corpos aprisionados em paredes. Nascido em Milão em 1969, mudou-se para a Sardenha em 1978 onde viveu durante doze anos. Nesse tempo, desenvolveu uma paixão intensa pelo desenho e pela escultura e continuou o seu trabalho artístico sem ter tido alguma formação na área. Depois de acabar a escola secundária em Cagliari sobre Estudos Clássicos, voltou para Milão e frequentou então a universidade. Em 1995 se licencia em Literatura Moderna e a sua tese é sobre Crítica de Arte. Atualmente as suas obras estão expostas em vários museus da Itália e nas maiores cidades do mundo, onde têm sido vendidas com muito sucesso e prestigiadas em casas de arte como a Christie´s, Sotheby´s ou Pandolfini. Matteo hoje vive e trabalha em Milão. 

 Bonsoir!










quinta-feira, 3 de maio de 2012

A civilização e seus descontentamentos


Dirigirmo-nos a alguém com a missão de que se transforme noutro, é irmos na direção de que ele deixe de ser ele. Cada qual defende a sua personalidade, e só aceita uma mudança na sua maneira de pensar ou de sentir, na medida em que esta alteração possa entrar na unidade do seu espírito e enredar-se na sua continuidade; ou seja, na medida em que essa mudança se puder harmonizar e se integrar com todo o resto da sua maneira de ser, pensar e sentir, e possa também enlaçar-se nas suas recordações. Nem a um homem, nem a um povo  se pode exigir uma mudança, que desfaça a unidade e a continuidade da sua pessoa.


Miguel de Unamuno


A felicidade é um problema de gestão da libido em cada indivíduo. O homem predominantemente erótico irá escolher, em primeiro lugar, relações emocionais. O homem de ação nunca abandonará o mundo externo no qual poderá sempre experimentar o seu 'poder'. 


Freud


Demasiado humano


Vinte séculos inteiros e completos e não inventaram alguma explicação ao sofrimento; sofre-se em comparação com o que é "não sofrer". E nenhum homem saudável quer ser educado previamente para aquilo que é mau. Já não se treina a resistência à dor: mas evita-se, sim, a mistura com essa 'coisa repelente'.


Gonçalo Tavares - in 
'A Máquina de Joseph Walser'


Para que serve o desejo de revolta se te recusas a revoltar-te quando estás saciado? 
Stig Dagerman

Bonjour!

quarta-feira, 2 de maio de 2012

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