"Quando estou sozinho na minha biblioteca, no mais profundo isolamento
Sou capaz de ficar nove, dez, doze horas sem falar com ninguém.
Chego até a desligar o telefone durante essas horas.
Meu horizonte visual fica então contido entre volumes grandes e pequenos
Marrons, negro, azuis, com ou sem encadernação de couro ou dourado na lombada.
É esse o meu mundo, assim, limitado, mas sem restrições:
Minha biblioteca está além das barreiras da construção e do cálculo.
Nela, meu espírito não é mais estado, mas atividade.
Quem chegar aqui sem ser anunciado
Não vai ver a imagem de uma figura de cabelos brancos, nem o espaço entre as estantes,
Mas uma relação abstrata, totalmente inaplicável aos fatos sensíveis.
Depois, saio para a rua, doze horas mais tarde.
Encontro o meu vizinho falando de taxas de câmbio. E o dono da banca de jornal, com sono, ao lado das manchetes que falam das eleições de 15 de novembro.
Vou até a padaria, pego um litro de leite, dois pães e meio quilo de café.
Pago no caixa e volto para casa, tomando cuidado para atravessar a rua, por causa do trânsito.
Enquanto o elevador me leva de volta para a minha biblioteca
Fico achando que esta realidade envolvente é uma mera hipótese
Onde tudo é menos, embora num horizonte sem limites.
Quando entro de novo, no meu diminuto espaço, entre os tomos e as estantes
Sinto uma espécie de volta heróica a um território infinito.
Às vezes Madame Bovary aparece, ou Fausto, ou Siegfried.
A gente conversa o resto da noite, generosamente.
Enquanto isso, lá na rua, a vida se coagula mais um pouco
Em sua anônima trama caótica.
Quando o dia amanhece de novo, meu pequeno mundo-página
Parece um majestoso edifício de papel, no seu incorrigível otimismo.
Otimismo trágico, é verdade, com poucos indivíduos
Mas repleto de relâmpagos."
[ Da obra: Território do escritor, de Victor Leonardi ]
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