sábado, 31 de janeiro de 2009

As águas

"O acto de criação é de natureza obscura... nele é impossível separar o que é da razão e o que é do instinto, o que é do mundo e o que é da terra. Nunca nenhum dualismo serviu tão bem o poeta. Esse "pastor do Ser", na tão bela expressão de Heidegger, é, como nenhum outro homem, nostálgico de uma antiga unidade. As mil e uma antinomias, tão escolarmente elaboradas, quando não pervertem a primordial fonte do desejo,pecam sempre por cindir a inteireza que é todo um homem. Não há vitória definitiva sem a reconciliação dos contrários. É no mar crepuscular e materno da memória, onde as águas "superiores" não foram ainda separadas das "inferiores", que as imagens do poeta sonham pela primeira vez com a precária e fugidia luz da terra. Porque ao princípio é o ritmo; um ritmo surdo, espesso, do coração ou do cosmos — quem sabe onde um começa e o outro acaba? Desprendidas de não sei que limbo, as primeiras sílabas surgem, trémulas, inseguras, tacteando no escuro, como procurando um ténue, difícil amanhecer. Uma palavra de súbito brilha, e outra, e outra ainda. Como se umas às outras se chamassem, começam a aproximar-se, dóceis; o ritmo é o seu leito; ali se fundem num encontro nupcial, ou mal se tocam na troca de uma breve confidência, quando não se repelem, crispadas de ódio ou aversão, para regressarem à noite mais opaca.Uma música, sem nome ainda, começa a subir, qualquer coisa principia a tomar corpo e figura, a respirar, a movimentar-se, a afirmar a sua existência e a do poeta com ela, a erguerem-se ambos a uma comum transparência,até serem canto claro e fundo — voz do homem. 
Porque o poeta vai nascendo com o poema para a mais efémera das existências; são as palavras, a luz e o calor que de umas às outras se comunicam, que o vão por sua vez criando a ele, acabando por lhe impor a mais dura das leis — a de que se extinga para dar lugar à fulguração do poema, "a de que deixe de ser para que o poema seja, e dure, e o seu fogo se comunique ao coração dos homens". 
[Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário' ]

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Sopa e descanso

"Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se "sócios". Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que deveria ser desmedida, é na "medida do possível". O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.  Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão covardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?  O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma "ajudinha". Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal "da pantufa e da serenidade".  Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.  O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só "1 minuto" de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também..." [Texto de Miguel Esteves Cardoso ]

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

As amizades felizes que fiz...

"A nossa alma quer-se agitada pela esperança e pelo temor; só se sente feliz com as coisas que a fazem sentir a sua própria existência. (...) É certo que as necessidades físicas são a fonte dos prazeres dos sentidos e estou convencida de que há mais prazer numa fortuna medíocre do que numa completa abundância. Uma caixa, uma peça de porcelana, um móvel novo são uma verdadeira bem-aventurança para mim; mas se tivesse trinta caixas seria pouco sensível à trigésima primeira. Os nossos gostos desvanecem-se facilmente com a saciedade e devemos dar graças a Deus por nos ter dado "as provações necessárias" para os conservar." [Madame du Chatelêt, in 'Discurso sobre a Felicidade¹']
[Cachoeira]
"É comum pensarmos que é difícil "ser-se feliz" e existem boas razões para assim pensar; mas seria mais fácil sermos felizes se, nos homens, as reflexões e a pauta de comportamento precedessem as ações. Somos arrastados pelas circunstâncias e entregamo-nos às esperanças, que nos proporcionam apenas metade do que esperamos. Enfim, só nos damos claramente conta dos meios para sermos felizes quando a idade e os entraves que a nós próprios pusemos lhes colocam obstáculos. Para sermos felizes, é preciso termo-nos desembaraçado dos preconceitos, sermos virtuosos, gozarmos de boa saúde, termos gostos e paixões, sermos susceptíveis de ter ilusões, pois devemos a maior parte dos nossos prazeres "à ilusão", e infeliz daquele que a perder. Longe, pois, de procurarmos fazê-la desaparecer sob o archote da razão, tratemos de passar mais uma camada do verniz que a ilusão lança sobre a maior parte dos objectos; este é-lhe ainda mais necessário do que os cuidados e os adornos o são para os nossos corpos. "É preciso começarmos por dizer a nós próprios e por convencer-nos de que não temos nada mais a fazer neste mundo, para além de nele procurarmos sensações e sentimentos agradáveis." Os moralistas que dizem aos homens "reprimi as vossas paixões e dominai os vossos desejos, se desejais ser felizes" não conhecem o caminho para a felicidade. Só somos felizes mediante gostos e paixões satisfatórias; digo gostos porque não somos sempre felizes o bastante por termos paixões e porque, à falta das paixões, não resta, senão, contentarmo-nos com os gostos..."
["Madame du Chatelêt, in 'Discurso sobre a Felicidade²']
[Franz Caffé]
"Procuremos manter-nos de boa saúde, não ter quaisquer preconceitos, ter paixões, e pô-las ao serviço da "nossa felicidade", substituir as nossas paixões por gostos, conservar preciosamente as nossas ilusões, ser virtuosos, nunca nos arrependermos, afastar de nós as idéias tristes e nunca permitir ao nosso coração conservar uma centelha de gosto por alguém que nos diminua e que deixe de amar-nos. Por pouco que envelheçamos, um dia seremos forçados a abrir mão do amor, e esse dia deve ser aquele em que o amor já não nos faça mais felizes. Pensemos, enfim, em cultivar o gosto pelos estudos, esse gosto que faz depender a felicidade apenas "de nós próprios". Ponhamo-nos ao abrigo da ambição e, sobretudo, cuidemos bem de saber o que queremos ser; decidamo-nos sobre o caminho que queremos seguir para passar a nossa vida e procuremos, sempre, semeá-lo de flores. Muitas flores!"
[Madame du Chatelêt, in 'Discurso sobre a Felicidade³' ]
 

sábado, 24 de janeiro de 2009

As velas ardem até ao fim...

"Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o sginificado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer...
Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente.
Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice."
[Sándor Márai, in "As Velas Ardem Até ao Fim"]
"Há vária gente que não gosta de evocar o passado. Uns por energia, disciplina prática e arremesso. Outros por ideologia progressista, visto que todo o passado é reaccionário. Outros por superficialidade ou secura de pau. Outros por falta de tempo, que todo ele é preciso para acudir ao presente e, o que sobra, ao futuro. Como eu tenho pena deles todos. Porque o passado é a ternura e a legenda, o absoluto e a música, a irrealidade sem nada a acotovelar-nos. E um aceno doce de melancolia a fazer-nos sinais por sobre tudo. Tanta hora tenho gasto na simples evocação. Todo o presente espera pelo passado para nos comover. Há a filtragem do tempo para purificar esse presente até à fluidez impossível, à sublimação do encantamento, à incorruptível verdade que nele se oculta e é a sua única razão de ser. O presente é cheio de urgências mas ele que espere. Ha tanto que ser feliz na impossibilidade de ser feliz. Sobretudo quando ao futuro já se lhe toca com a mão. Há tanto que ter vida ainda, quando já se a não tem..."
[Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 5"] "O desejo de se ser diferente daquilo que se é, é a maior tragédia com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano. Porque não é possível suportar a vida de outra maneira, apenas sabendo que nos conformamos com aquilo que significamos para nós próprios e para o mundo. Temos de nos conformar com aquilo que somos e de ter consciência, quando nos conformamos, de que em troca dessa sabedoria, não recebemos elogios da vida, não nos põem no peito nenhuma condecoração por sabermos e aceitarmos que somos vaidosos ou egoístas, carecas ou barrigudos - não, temos de saber que por nada disso recebemos recompensas, nem louvores. 
Temos de suportar, o segredo é isso. Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmos e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão. Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa..."
[Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim"]

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A memória

"O patrimônio do silêncio. Os livros acumulam-se pela casa. Cobrem as paredes, enchem as prateleiras dos armários. Aguardam-nos calados, com suas páginas apertadas, onde o pó e a humidade se infiltram. Disciplinados, exibem apenas o seu dorso curvo, coberto de pele, ou então magro, estreito, de papel. A memória é um silêncio que espera..." 
[Ana Hatherly, in 'Tisanas']
"Os amantes arrependem-se do bem que fizeram, quando o seu desejo já se exinguiu, ao passo que aqueles que não têm amor nunca tiveram a oportunidade de se arrepender; pois não é sob o jugo da paixão, mas voluntariamente, e conduzindo bem os seus interesses, sem ultrapassar os limites dos seus próprios recursos, que eles fazem bem ao amigo. 
Além disso, os amantes repassam na mente os danos que o amor lhes causou nos negócios e as liberalidades que eles fizeram, e, acrescentando a isso a dor que sentiram, julgam que há muito tempo que têm vindo a pagar o preço dos favores obtidos. 
Já aqueles que 'não estão apaixonados' não podem nem usar como pretexto os seus negócios negligenciados, por causa do amor, nem alegar as intrigas dos familiares, de modo que, isentos de todos esses aborrecimentos, eles só têm que se empenhar em fazer tudo o que acham que deve agradar ao seu bem-amado..." 
[Platão, in 'Fedro' /Amor sem amar!]
"A minha mala estava meio feita em cima da cômoda do hotel, onde a tinha deixado quando saí às pressas... Uma luz a piscar no telefone indicava que eu tinha uma mensagem. Mas ainda não sabia de quem e nem porque eu mal entrei no quarto, e tinha ido sentar-me à minúscula escrivaninha junto à janela que dava para o trânsito... e novamente, em papel timbrado do hotel, ia escrever o mais rapidamente possível um diálogo com Jamie, que nunca tinha acontecido. 
O meu caderno de tarefas registrava o que eu fazia e o que tinha de fazer como auxiliar de uma memória claudicante! 
Esta cena de diálogo "nunca pronunciado" registrava o que "não tinha acontecido" e não era auxiliar de nada, não aliviava nada, não levava a nada, e no entanto, tal como na noite das eleições, tinha achado extremamente necessário escrevê-lo no momento em que entrei no quarto, porque as conversas que "ela e eu não temos", são ainda mais pungentes do que "as que temos", e "ela imaginária" é mais viva no centro de sua personagem do que "ela real" alguma vez será..."
[Philip Roth/ O Fantasma Sai de Cena- Editora Dom Quixote]

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Os amores

"Se não houver esperanças de que o teu amor seja recebido, o que tens a fazer é "não o declarar". Poderá desenvolver-se em ti, num ambiente de silêncio. Esse amor proporciona-te então uma direcção que permite aproximares-te, afastares-te, entrares, saíres, encontrares, perderes. Porque tu és aquele que tem de viver. E não há vida se nenhum deus te criou linhas de força. Se o teu amor não é recebido, se ele se transforma em súplica vã como recompensa da tua fidelidade, se não tens coração para te calares, nessa altura vai ter com um médico e te curar. É bom não confundir o amor com a escravatura do coração. O amor que pede é belo, mas aquele que suplica, é amor de criado."
[Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"]
Statue-Paris!
"Dar tudo ao outro, dar-lhe tanta verdade quanta ele possa suportar, e mais e mais; obrigar o outro a elevar-se a um grau superior de eminência, fulguração, mas não tanto que o fira ou destrua em overdose que o leve a romper o contrato — "o difícil equilíbrio dos amantes"! Amar é raro porque poucos somos capazes de respirar as vastas planícies com a metade do seu pulmão; e amar é raro porque poucos aceitam a presença do seu gêmeo, a boca insaciável de um irmão que, todos os dias, o vento esculpe e destrói..." 
[Casimiro de Brito, in 'Arte da Respiração']
"Muitas vezes os seres são claros e translúcidos por serem primários e à medida que vão evoluindo é que se vão tornando opacos. Pensemos. Talvez seja isto: à medida que mais evoluímos é que vão sendo precisos olhos mais penetrantes para se poder distinguir a qualidade de um ser. Então não será só à luz do sol que se deverá considerar a limpidez ou a translucidez do corpo de um ser, mas à luz de outros princípios luminosos. Aqui a razão precisava ter evoluído paralelamente aos olhos, pois os nossos olhos vão de encontro aos seres como de encontro a um muro." 
[Ana Hatherly, in 'O Mestre'] "O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê!"
[Platão!]

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

As buscas

À procura da sabedoria!
"Era uma vez uma pessoa que procurava a sabedoria. Tinham-lhe dito que para a atingir tinha sempre de aceitar e recusar ao mesmo tempo tudo o que lhe fosse oferecido, dito ou mostrado. Quando perguntava por onde era o melhor caminho e lhe diziam "é por ali" ela devia seguir imediatamente nesse sentido e, depois, no sentido contrário. Tendo assim percorrido todas as direcções indicadas, e as não indicadas, sem mais caminhos a percorrer, sentou-se no chão e começou a chorar. Sem saber, tinha chegado." 
[Ana Hatherly, in 'Tisanas']
À procura da evolução!
"Há pessoas a quem certas palavras, lhes fazem morrer as próprias na garganta." 
"Não podendo falar, sentam-se do lado de cá do mar e olham a outra margem não podendo lá estar, embora pudessem. Eis como os possessos de realidades violentas não podem sentar-se à mesa e discorrer, simplesmente! O que já seria imenso ou excepcional." 
[Ana Hatherly, in 'A Cidade das Palavras']
Se as palavras morrem na garganta, após ouvir os outros, que seja prudente não falar em corda na casa de enforcado!!!
É dever do homem não apenas falar, mas também escutar mais os outros. A ignorância aparece sempre neste ponto e cava fundos maiores. Idem aos que falam para os que não querem escutar. Para haver comunicação e fazer da mesma um "fruto", é necessário "haver os dois". Mas o dom da oratória é específico e traz benesses a todos nós, à sociedade, todavia foi na base do entendimento que o homem foi se ajeitando como ser racional,  pensando e interagindo com o espaço em que vive, ao formar a espécie de civilização à qual pertencemos."
Quando nada tens a ouvir, nem a falar, inevitavelmente, 
morres por dentro!
Bonjour!

sábado, 17 de janeiro de 2009

As escolhas

"Até agora, nunca tinha amado as suas amantes; havia algo nele que o levava a tomá-las demasiado depressa para ter tempo de criar a aura, a zona necessária de mistério e desejo, que lhe permitisse organizar mentalmente aquilo que poderia um dia chamar-se amor..."
[Júlio Cortázar/ in"A Barca" ou "Nova Visita à Veneza" ]
Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras.  [Samuel Beckett, in ' Textos para Nada' / Fotos: Nina Dazs!]

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O Invisível

“Há que fazer uma distinção entre morrer e a morte. Nem tudo é morrer ininterruptamente. Se somos saudáveis e nos sentimos bem, vamos morrendo invisivelmente. O fim, que é uma certeza, não tem que ser arrojadamente anunciado. Não, não podemos compreender. A única coisa que compreendemos acerca dos velhos, quando não somos velhos, é que foram marcados pelo seu tempo. Mas compreender apenas isso, imobiliza-os no seu tempo, o que equivale a não compreender nada. 
Para aqueles que ainda não são velhos, ser velho significa que já fomos. Mas ser velho também significa que apesar de, além de e para lá do nosso estado de ser, ainda somos. O nosso estado de ser está muito vivo. Ainda somos e sentimo-nos tão atormentados pelo ainda-ser e pela sua plenitude como pelo já-ter-sido e pela sua qualidade de passado.
Pensem na velhice do seguinte modo: o fato de a nossa vida estar em risco é apenas um fato quotidiano. Não podemos esquivar-nos ao conhecimento daquilo que em breve nos espera. O silêncio que nos envolverá para sempre. Tirando isso, é tudo a mesma coisa. Tirando isso, somos imortais enquanto vivermos.”
[Philip Roth, O Animal Moribundo, pg. 38]

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Pensar

"Não há nada de mais difícil em literatura do que descrever um homem a pensar. Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas: «pensando ininterruptamente nelas». E de facto bem pode dizer-se que as idéias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas, vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau!
O mesmo acontece conosco, apenas com a diferença de que não fazemos tantas tentativas ao acaso, mas sabemos já, por experiência, mais ou menos como fazer as coisas. E se uma cabeça inteligente, como é óbvio, revela muito mais habilidade e experiência nas voltas que dá do que uma cabeça estúpida, o momento em que consegue passar não é para ela menos surpreendente; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa,em vez de esperarem pelo autor. 
A essa sensação desconcertante chamamos nós hoje em dia intuição, depois de, antes, outros lhe terem chamado inspiração, e julgamos ver nisso algo de suprapessoal; mas trata-se antes de qualquer coisa de impessoal, concretamente da afinidade e da coerência das próprias coisas que se encontram na nossa cabeça. Quanto melhor a cabeça, menos visíveis são os seus atos. É por isso que o pensamento, enquanto estiver em movimento, é um estado deplorável, semelhante a uma cólica de todas as circunvoluções do cérebro; e quando chega ao fim já não tem a forma do processo de pensamento tal como o experienciamos, mas a da coisa "já pensada", que, infelizmente, é uma forma impessoal, porque então o pensamento se volta para fora e está preparado para se comunicar com o mundo." [Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades']

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

As alegrias... e a falta delas

"As virtudes humanas muitas vezes se compõem de melancolia, e de um retiro agreste. A maioria das vezes é humor o que julgamos razão; é temperamento o que chamamos desengano; e é enfermidade o que nos parece virtude.
Tudo são efeitos da tristeza; esta obriga-nos a seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz reflectir sobre o passado, quase sempre nos ocupa em considerar futuros; por isso nos infunde temor, e covardia, na incerteza de acontecimentos felizes, ou infaustos; e verdadeiramente a alegria nos governa em forma, que seguimos como por força os movimentos dela; e do mesmo modo os da tristeza. Um ânimo alegre disfarça mal o riso, um coração triste encobre mal o seu desgosto: como há-de chorar quem está contente? E como há-de rir quem está triste? Se alguma vez se chora donde só se deve rir, ou se ri por aquilo por que se deve chorar, a alma então penetrada de dor, ou de prazer, desmente aquele exterior fingido, e falso. Só a vaidade sabe transformar o gosto em dor, e esta em prazer, a alegria em tristeza, e esta em contentamento; por isso as feridas não se sentem, antes lisonjeiam, quando foram alcançadas no ardor de uma peleja, esclarecida pelas circunstâncias da vitória; as cicatrizes por mais que causem deformidade enorme, não entristecem, antes alegram, porque servem de prova, e instrumento visível, por onde a cada instante, e sem palavras, o valor se justifica; são como uma prova muda, que todos entendem, e que todos vêem com admiração, e com respeito."
[Matias Aires, in 'Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens']

sábado, 10 de janeiro de 2009

O riso

"You can turn painful situations around through laughter.
If you can find humor in anything, even poverty, 
you can survive it !"  
["Podes contornar situações de sofrimento através do riso. Se conseguires encontrar humor em qualquer coisa, até na pobreza, podes sobreviver-lhe!"]
Bill Cosby
"O riso, a risada, o senso de humor são, conjuntamente com a seriedade, com o senso de responsabilidade, com o sentido do sagrado, manifestações de uma vida íntegra, bem-temperada. A palavra têmpera indica a presença de um equilíbrio, de uma mistura, que modera os pólos em conflito.
A palavra humor já nos leva a pensar em uma realidade fluída, flexível, não-rígida. Como costuma acontecer com todas as instituições, a "razão" acabou por seguir a tendência de se afastar do humor, da brincadeira, do jogo; acabando por tornar-se fria e sem cor. É conhecida a rigidez, a impessoalidade da racionalidade vigente nos dias de hoje. 
Ortega nos lembra que as pessoas que não possuem sensibilidade e nem dão atenção para as artes são "reconhecidas por uma peculiar esclerose de todas aquelas funções que não são o seu estreito ofício. Até os seus movimentos físicos costumam ser torpes, sem graça nem soltura. O mesmo percebemos na inclinação de sua alma".
[Ortega y Gasset, J. El Espectador. Madrid, Bolaños y Aguilar, 1950, p. 398.]

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A Palavra

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. 
Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso... a palavra foi feita para dizer."
[Graciliano Ramos/ entrevista concedida em 1948] A palavra! A palavra impressa no papel - a palavra não lida - assemelha-se a um germe latente, à espera de sua hora. Escreve-se na esperança de que alguém se contagie pelo lido, pelo impresso. É como se as palavras fossem poros por onde vidas humanas diversas pudessem se comunicar. É na vida - vida de cada um - que a palavra ganha sentido. Abre-se o livro e surge a palavra escrita. Grita-se e ouve-se, surge a palavra falada.
A palavra é, assim, abstração de realidade muito mais complexa - não as frases, sentenças, parágrafos, contextos escritos ou falados, mas realidade que se confunde com as coisas, pensamentos, sentimentos, humores. A palavra faz parte de toda uma experiência, postura, sabor de vida. E a grande dificuldade nossa é, justamente, analisar esse enorme emaranhado de sentidos em que ela habita. Há palavras que não podem ser ditas em certas situações, ficam proibidas, e em outras, até são toleradas. Essa carga emocional, à qual estão aderidas, é responsável por muito dos problemas "intelectuais", que têm a sua origem muito mais na "falta de discriminação afetiva do que intelectual". Essa experiência da vida, já chamada, há muito, de SABEDORIA, constitui a estrutura saborosa da vida. Há várias palavras para designar essa estrutura, cada uma realça um de seus aspectos: têmpera, disposição, atitude, humor, postura.  Diz Ortega: "A vida é angústia e entusiasmo, delícia e amargura, e inumeráveis outras coisas." Bonjour! :)

08/01...Parabéns Caio!

"Se o teu amor esbarra com o absoluto das coisas, se por exemplo tem de franquear a impenetrável parede de um mosteiro ou do exílio, agradece a Deus que ela, por hipótese, retribua o teu amor, embora na aparência se mostre 
surda e cega. 
Há uma lamparina acesa para ti neste mundo. Pouco me importa que tu não possas servir-te dela. Aquele que morre no deserto tem a riqueza de uma casa longínqua, embora morra.  Se eu construir almas grandes e escolher a mais perfeita para a rodear de silêncio, ficarás com a impressão de que ninguém recebe nada com isso. 
E, no entanto, ela enobrece todo o meu império. Quem quer que passa ao longe, prosterna-se. 
E nascem os sinais e os milagres.  Não importa que o amor que alguém nutre por ti seja um amor inútil. Desde que tu lhe correspondas, caminharás na luz. 
Grande é a oração à qual só responde o silêncio; basta que o deus exista.  Se o teu amor é aceite e há braços que se abrem para ti, então pede a Deus que salve esse amor de apodrecer. 
Eu temo pelos corações cumulados." 
Antoine de Saint-Exupéry 
 [ in "Cidadela" ]
Ao meu filho Caio, todo o meu imenso amor!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Ana Peluso

"Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler 
e não lêem."
[Mário Quintana]
"Medo. Medo de escrever e não sair nada. Não rimar condão com fada. Não confrontar a metáfora com a ênclise, atrás da porta que acabei de grafar. Medo do til ter medo de altura, e transformar meu ão em um monossilábico ao, com a redução do o a u, uma semivogal. Medo do i não aceitar o pingo, e ao lado de um zero, formar uma facção de códigos binários. Medo do ar não entrar pelo fonema, e este nunca sair nasal. Medo do texto atonal. Medo da falta de rimas métricas e assimétricas. Medo de sequestro de letras. Do papel em branco. Medo do silêncio do teclado. Do estado hiperbólico das sentenças. Morrer de medo. Estar aquém de um grande verso. Medo do reverso da poética. A metálica forma do medo. Medo de escrever plástico só por sua acepção. Medo das crases. Dos acentos circunflexos, por não existirem os circônflacos. Medo dos flancos do dois pontos. Medo do assombro sem exclamação. Medo do não com ponto final. Do mal uso da cedilha. Das filhas da letra ésse quando se unem aos verbos. Do que fazem com eles. Medo da interrogação. Medo de títulos e epígrafes. Medo de gafes. Medo da origem das palavras. Se nascem mortas de medo. Medo das línguas esquecidas serem as mesmas das quais me lembro. Medo de abuso do texto. Do limite de linhas. Dos rodapés e rubricas. Medo que o trema não seja nunca mais utilizado. E com ele vá-se embora toda a intriga. Medo da falta de idéias. Ou do extremo oposto. Algumas delas ressurgirem do esquecimento para o repetido uso. Medo do p e b mudos. Do hífen do contra-ataque da curva dramática de um texto. Do abandono entre parênteses das reticências por medo. Medo do travessão e da vírgula. Do narrador e da terceira pessoa. Do protagonista. Do epílogo. De uma frase sair à toa. Medo de assinar o final do texto. Da confissão do confuso. Do mal hábito de sentir tudo muito absurdo. E saltar. Soltar a folha cheia de medos por cima do resto do mundo."
[Ana Peluso é paulistana, poeta, ilustradora, participou de algumas antologias, entre elas "Dezamores", Ed. Escrituras, 2003, editou o site de arte e literatura "Officina do Pensamento", com inúmeras obras publicadas.] Saudades de ti, amiga querida... quando te reencontrarei?!

sábado, 3 de janeiro de 2009

Mumuila

[Mumuila]
"Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia 
alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. 
Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim."
[A hora da estrela/ Clarice Lispector]
[Povos Cabinda]
"Quem sabe a que escuridão de amor
pode chegar o carinho."
[Laços de família/ Clarice Lispector]
[Lubango]
"O cacto é cheio de raiva com os dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo. Ele te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãe severa."
[Um sopro de vida/ Clarice Lispector!]

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

2009! Bonne année

A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social.
Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary.
O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. 
A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente.
Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. 
Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
 
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.
O que é mais subversivo do que a leitura?
Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores e alegrias, tantos outros sentimentos… A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna colectivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro.
Sim, a leitura devia ser proibida. Ler pode tornar o homem perigosamente Humano! Texto de Guiomar de Grammon [In: A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999. pp. 71-3]

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