quarta-feira, 15 de abril de 2009

Espelho, espelho meu

[Kate Moss]
"Durante muitos anos acreditei que o rosto nos fosse dado ao acaso. Cheguei até a pensar que não havia razão para que os rostos das pessoas inteligentes deixassem ver, de alguma maneira, a inteligência (pois supunha que ela trabalhasse silenciosamente, nas profundezas, sem alterar a superfície, como um redemoinho em águas mansas). Em compensação, eu me dizia, as pessoas que precisam de toda a sua atenção para "entender as coisas mais evidentes", sem dúvida imprimem na sua própria cara, através do prolongado esforço mental, uma expressão aguda ou, pelo menos, desperta. Com esta reflexão eu admitia que a matéria que forma o rosto é dócil ao espírito – por assim dizer – que a anima. Há tanto para aprender neste mundo que algo sempre nos escapa. Quero dizer que precisei muito tempo para aprender aquilo que ninguém ignora: que os loucos têm cara de loucos; os gênios, de gênios; os idiotas, de idiotas...
[Marlon Brando]
É verdade que um elemento do nosso rosto nos toca ao acaso; o ponto de partida, a base ou o fundamento nos chega por via hereditária; também é certo que recebemos por herança boa parte do resto do nosso caráter e que não invocamos a circunstância para eludir responsabilidades. Não me lembro quando foi que um fotógrafo me disse: "O senhor não vai me acreditar, mas há pessoas que não assumem a responsabilidade por seu próprio rosto". Imediatamente resolvi, por via das dúvidas, assumir a responsabilidade pelo que eu tenho, não sem perguntar-me o que havia de certo nessa proposta tão pomposa. Ponderei: se influímos na evolução do nosso rosto, em alguma medida somos responsáveis. O ruim é que também nessa evolução colabora a decrepitude. Talvez dependa de nós que a decrepitude se manifeste mais ou menos avessa, imbecil, devassa, ávida.
[Marilyn Monroe]
Segundo minha experiência, um observador não muito atento de seu próprio rosto se identifica e no fim se amolda à imagem frontal que o espelho lhe propõe. Os perfis, quando os enxerga, o surpreendem, às vezes ingratamente, como o timbre de sua própria voz reproduzida por um aparelho. Algumas vezes pensei que minha cara não é aquela que eu teria escolhido. Então me perguntei qual seria aquela que eu teria escolhido e descobri que nenhuma me convinha. A do jovem da luva, de Ticiano, admirável no quadro, não me pareceu adequada, por corresponder a um homem cujo modo de vida eu não desejava para mim mesmo, pois intuía que nele a atividade física prevalecia em excesso. Os santos pecavam pelo defeito oposto: eram muito sedentários. Quanto a Deus Pai, achei-o solene. As caras dos pensadores me pareceram pouco saudáveis e as dos boxeadores, pouco sutis. As caras que realmente me agradam são as de mulher mas não servem para trocar pela minha. Depois dessa indagação de preferências, resignei-me à cara herdada. Vista de frente, no espelho, me parecia aceitável, com algo de leonino que, ainda que não assegurasse uma vontade ou um poder efetivos, prometia-os vagamente. Quanto a essa promessa, tive uma desilusão. Os anos infundiram nos olhos uma debilidade que aparentemente os liquefez e que tornou sua luz mais escura e triste. A mímica, própria de meu nervosismo natural, desenhou dos lados da boca rugas em forma de arcos, ou de parênteses, que transformaram o leão jovem num cachorro velho. Nunca me habituei aos meus perfis. Creio que o esquerdo expressa alguma recôndita debilidade do meu espírito, que me repele. No outro, o nariz cresce grosseiramente e, não sei por que, se encurva.
[Albert Einstein at beach, 1945]
Definitivamente, esta é a cara que tenho. Procurarei não agravá-la com maldades, para assumir algum dia, sequer protegido pelo inevitável emagrecimento, a plena responsabilidade que, de um tempo para cá, simulo diante de meus amigos fotógrafos..."
Bonjour!
[Bioy, in "Eu e meu rosto" - Vídeo Moda 60]

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