sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
Olho-te demasiado dentro
"Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são idéias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota ser proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade. Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota.
Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a vida a dizer-me: "Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma graça, sabias? Vá, reza comigo."
E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela. Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada (creio eu) "revelação" e que isso fosse idiota. Mas a minha parente era-o, de certeza, e queria fazer de mim outro idiota. Não por desejar "reconverter-me", mas por aconselhar-me, como meio, o de eu não pensar, o de eu (principalmente) não pensar. Se tivesse casado com ela (que não era filha da minha lavadeira) talvez tivesse sido feliz - não se sabe - idiota e feliz.
Assim, fiquei longos anos idiota e infeliz, infeliz por ser idiota, e saber que o era e que não podia deixar de o ser. Ora, um idiota que é "infeliz" por saber que é idiota já pode estar a caminho de deixar de o ser. É uma possibilidade...
Há idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de felicidade que consiste em uma pessoa "se julgar muito superior" às que a rodeiam...
Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa."
[Alexandre O'Neill, in "Idiotia e Felicidade"]
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